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|Crítica| 'Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo' (2022) - Dir. The Daniels

|Crítica| 'Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo' (2022) - Dir. The Daniels

Crítica por Victor Russo.

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'Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo' / Diamond Films BR
 
 
Título Original: Everything Everywhere All at Once (EUA)
Ano: 2022
Diretor: The Daniels
Elenco : Michelle Yeoh, Ke Huy Quan, Stephanie Hsu, James Hong e Jamie Lee Curtis.
Duração: 140 min.
Nota: 3,5/5,0

 

“Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo” usa o multiverso para mergulhar na essência do cinema ao integrar a teoria do espelho à diegese, enquanto questiona as múltiplas personas de um ator (e, por consequência, as nossas também).

O novo longa dos “Daniels” (como é conhecida a dupla Daniel Kwan e Daniel Scheinert) já abre mostrando os personagens pela primeira vez pelo reflexo de um espelho circular, antes da câmera adentrar esse esse espelho, e, por consequência, naquele universo. Longe de ser um acaso ou exibicionismo estilístico dos cineastas, o espelho vai ser figura central no longa, assim como o círculo (e, em menor escala, as telas).

Em uma primeira análise, o espelho surge no longa como uma forma de refletir aquela personagem, mas não como a vemos (ou como ela mesmo se vê), e, sim, um reflexo diferente, idealizado. A teoria do espelho, que se apoia na psicologia, mais precisamente no “estádio do espelho”, muito defendido por Lacan, fala sobre o espectador do cinema, ao adentrar em uma sala escura e ser confrontado pela tela, o que acontece é uma regressão a essa fase da criança nos primeiros meses de vida, em que, ao ter contato com seu reflexo pela primeira vez, ela se identifica, mas vê no espelho um “eu ideal”.

Tal teoria seria aprofundada para o cinema para colocar o espectador vendo na tela e no personagem uma espécie de “duplo idealizado”, criando uma relação de proximidade, mas inalcançabilidade com aquele mundo. 

Então, “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo” se usa dessa teoria, mas a insere em sua diegese, e, consequentemente, utilizando os espelhos como elemento central de sua mise en scène. Ao nos aproximar da Evelyn (Michelle Yeoh) “incompetente” e de muitos hobbies e paixões inalcançáveis, como dançar, cozinhar ou cantar, somos levados a acompanhar o universo da Evelyn que mais se aproxima do espectador. A partir disso, a personagem vai ser confrontada por seus “duplos idealizados” de outros universos. Só que, ao contrário de nós, por fazer parte dessa mesma diegese, Evelyn tem a possibilidade de aprender a se conectar e se transformar em seus doppelgangers.

Dessa forma, o multiverso vira uma metáfora para a atuação, ou a figura do ator, para o cinema e para nós mesmos. Ao trazer em suas outras versões personagens protagonistas de wuxias ou “pessoas” capazes de lutar ou se envolver em dramas familiares, o longa acaba comentando sobre a própria carreira da Michelle Yeoh (muito conhecida na China por wuxias e filmes de Kung Fu, enquanto em Hollywood costuma trabalhar mais em dramas ou dramédias familiares). 

Assim, a ideia do duplo ou do “eu ideal” se transforma na essência da atuação ou na vida de um ator. Ao interpretar diversos papéis diferentes, em filmes distintos, o ator ou a atriz acaba adquirindo um pouco desses novos “eus” à sua personalidade. Ao mesmo tempo, não estaríamos todos nós interpretando durante toda a nossa vida, seja ao esconder uma verdade da mãe quando criança para não ficar de castigo ou ao ser alguém diferente na frente de outras pessoas? Não estaríamos nós mesmo atrás de um “eu ideal inalcançável”, enquanto não somos capazes de ser “nós mesmos” (se é que isso realmente existe)?

A obra tenta resolver essas questões a partir do momento em que esses vários “eus” se unem nos momentos de vulnerabilidade, quando o amor e a perda aparecem ou quando nos abrimos a um toque ou abraço, deixando os sentidos prevalecer sobre a razão ou as nossas máscaras sociais. Isso fica claro na resolução do longa, otimista, é verdade, mas que faz bem às possibilidades do cinema. Essa chance de, ao entrar em uma sala escura e ser engolido por aquele mundo, podemos acreditar pelo menos por alguns minutos que todos os problemas do mundo podem ser resolvidos.

E é essa essência do cinema que o filme também vai buscar. Mais uma vez, uma essência ou um “eu inalcançável”. Por isso, o longa não pretende responder a pergunta “o que é o cinema?”. Pelo contrário, a obra se abre a diversas possibilidades de se fazer cinema, ao apresentar uma mise en scène sem limites. Como é verbalizado em uma frase do filme, “quanto mais estranho melhor”.

Entretanto, essa estranheza nunca soa vazia, já que ela não vai surgir apenas em piadas ou na apresentação de mundos completamente diferentes do nosso, mas na própria encenação e decupagem, elementos que tornam um filme “único”. Assim, o longa parece sofrer uma metamorfose constante e se reencenar continuamente a fim de explorar essas diversas possibilidades do cinema por meio da atuação de Yeoh (o que seria o ator senão um dispositivo dramático em que o diretor expõe a sua visão).

"Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo” navega, portanto, por diversas realidades e fazeres cinematográficos. Começando com o caos cotidiano, em meio a um primeiro ato de encenação e decupagem dinâmicas, com personagens e câmera se movimentando apressadamente, para depois adentrar no cinema de ação oriental, sobretudo com ação em planos longos, e no drama estilizado que lembra em muito a estética do cineasta Wong Kar Wai, para finalmente se entregar a um drama mais hollywoodiano, disposto a fechar suas arestas e entregar uma mensagem ao público. 

E, no meio disso tudo, os Daniels se jogam em um fluxo de criatividade inconsequente, brincando com as possibilidades do multiverso de uma forma nunca antes vista e sem nunca perder o bom humor (a Marvel deveria aprender muito com esse filme para construir o seu multiverso, até agora, bem protocolar).

Daniel Kwan e Daniel Scheinert fazem de “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo” um estudo sobre o cinema, a atuação e as máscaras do ser humano, sem nunca amarrar as possibilidades da sétima arte. Se em algum momento eles passam do ponto ou fazem o diferente por pura diversão, serve também para entendermos que um filme nada mais é (ou deveria ser) do que um emaranhado infinito de possibilidades criativas sem nenhuma pretensão de agradar a um público específico. 

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