|Crítica| 'Tár' (2023) - Dir. Todd Field
Crítica por Victor Russo.
'Tár' / Universal Pictures
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Apesar de satirizar a sua protagonista e suas atitudes, "Tár" nunca a diminui como pessoa, em um filme que valoriza a necessidade do ser humano por trás da obra de arte e sua emoção
Para um filme sobre música, “Tár” é bastante silencioso. Ouvimos sim ensaios, aulas e alguma trilha sonora de vez em quando. Mas somos conduzidos durante os quase 150 minutos por silêncios e sons ambientes quase imperceptíveis na maioria das vezes. Isso porque, o longa até fala sobre música clássica (ou erudita), mas apenas como um ponto de partida para uma discussão sobre arte de forma geral e, principalmente, pelos artistas por trás das obras. Quase tudo aqui debatido pelos personagens funcionaria tranquilamente em uma discussão sobre cinema, por exemplo.
Assim, abrimos com uma narração bajulando Lydia Tár (Cate Blanchett), uma maestro (ou seria “maestrina?), e revelando todos os feitos grandiosos dela durante sua carreira. Porém, a câmera nunca revela quem está dizendo aquilo, pelo menos, não até a protagonista subir ao palco ao lado do jornalista. Antes disso, vemos essa mulher nas sombras de um túnel, tentando esconder o seu nervosismo. Quando sobe à posição de destaque, sua atitude muda. Blanchett se impõe com a sua segurança e elegância habitual, enquanto Todd Field inicia a cena com a personagem na borda do plano, até, aos poucos, a cada plano e contra-plano, situá-la centralizada e muito maior. Ela finalmente domina o show, ainda que aquilo, pelo menos até certo ponto, não passe de uma performance.
Ao acompanharmos a personagem durante toda a projeção, descobrimos tudo sobre ela, sobretudo aquilo que ela não revela na frente das outras pessoas. A atuação de Blanchett varia justamente entre essas diferentes personas, da imponência em público até momentos bastante ridículos que ela vive nas sombras. Nesse sentido, Field não esconde que, pelo menos em parte, “Tár” é uma sátira. Porém, em nenhum momento ele faz de sua protagonista uma piada. O humor sutil vem justamente dessa pompa de um mundo particular que se coloca acima da “sociedade comum”. Essa erudição que posiciona a arte em um lugar de poucos.
Só que, por mais que pareça contraditório, tanto as mudanças de Blanchett quanto a sequência de abertura revelam um caráter mais profundo sobre o tema. Se a sátira surge para ironizar essas imperfeições, no fundo, o diretor tem um discurso bastante firme sobre a necessidade do ser humano por trás da obra de arte. Não à toa, logo de início, o cineasta faz questão de exibir longos créditos com toda a equipe que participou da produção do filme, quase gritando para nós “esse filme foi feito por seres humanos, por artistas”.
É a velha discussão sobre a arte poder ou não ser feita por uma inteligência artificial, por exemplo. Não à toa, Field faz questão de colocar Lydia diversas vezes para ironizar outros artistas “xingando-os” de “robôs”. A arte requer o humano, a expressão artística não é determinada por fórmulas, mas por emoções que não podem ser medidas de maneira objetiva.
Por isso, a intenção de Field com a sátira não é um discurso contra o artista ou contra a arte. Muito pelo contrário, “Tár” é quase um manifesto a favor do artista. Não à toa, os únicos momentos em que a protagonista não hesita e fala com confiança são justamente quando ela coloca a sua paixão pela música em primeiro lugar. Ela entende que o fazer artístico requer estudo, mas, ao mesmo tempo, traz uma subjetividade tão pessoal que é impossível colocar a expressão artística em palavras, já que não se explicam sentimentos.
O lado mais cômico ou trágico do longa está justamente na elevação dessa arte além do ser humano. Na construção de um mito, muito reforçado pela ideia do púlpito que coloca a personagem acima da sua orquestra. Então, se a narrativa do longa se encaminha em direção à destruição dessa protagonista-mito, é muito mais no sentido ambíguo de, por um lado, reforçar essa provocação quanto ao tratamento dado à arte por parte desses artistas, e, por outro, reforçar a bela imperfeição que é o artista, capaz de criar lindas obras e, ao mesmo tempo, ser carregado de imperfeições. Lydia é essa dicotomia.
Assim, tudo que se apresenta à narrativa serve a esse manifesto em prol dos artistas. Desde a rejeição à ideia de originalidade (no sentido de criar algo do zero) e valorização da realização da obra, não importa o quão semelhante seja ao que já foi feita antes, o que conta é como aquilo se insere naquela obra específica e é capaz de gerar as mais variadas sensações no público. Até o como o mundo contemporâneo é parte daquele artista, tanto em sua criação quanto em sua possível destruição (e autodestruição). Nesse sentido, a escolha de não mostrar o que Lydia fez ou não fez com sua ex-pupila é precisa. Pouco importa se ela é culpada ou não, mais vale o como ela se relaciona com o mundo e esse mesmo mundo a julga de volta.
Tudo isso funciona muito bem sob a ótica de Field, que rompe com diversos elementos clássicos. Lydia vai sendo tirada do pedestal de mito e se transformando em uma pessoa comum prestes a ser quebrada. Para isso, o cineasta usa muito pouco do primeiro plano ou do contra-plongée. Com exceção de quando ela está no controle da sua orquestra, a personagem é quase sempre filmada em planos mais abertos e cheio de sombras. Field proíbe Lydia de ser uma estrela, ainda que tendo consciência de que a personagem irá brilhar sob o corpo e voz da sempre gigante Cate Blanchett.