|Crítica| 'Sombras de Um Crime' (2023) - Dir. Neil Jordan
Crítica por Victor Russo.
'Sombras de Um Crime' / Diamond Films
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Neil Jordan conhece as convenções do noir, mas não sabe ressignificá-las e se acomoda na homenagem sem muita personalidade
Poucos gêneros/estilos/movimentos são tão nebulosos e indefinidos quanto o chamado film noir. Tais obras, originadas a partir da literatura de detetive, criaram uma tendência natural nas décadas de 40 e 50. Tão aleatória a ponto de não ser percebida como tal nos Estados Unidos da época e só receber tal termo e status de gênero pelos franceses, que passaram a consumir esses filmes com o fim da Segunda Guerra Mundial. Originalmente em preto e branco, altamente estilizados, influenciados pelo Expressionismo Alemão e cheio de convenções (protagonista detetive particular de caráter dúbio, a dama fatal quase sempre loira, a trama de mistério que vai se abrindo em um labirinto de novos personagens etc), a ideia de um noir puro foi criada posteriormente, mas hoje o mais aceito é que obras do gênero lançadas após a década de 1950 sejam consideradas neo noir.
O termo não é aleatório, nem tem regras tão definidas. Em preto e branco ou em cores, seguindo todas as principais convenções clássicas do gênero ou apenas algumas, a ideia do neo noir parte de uma premissa semelhante ao maneirismo (não à toa, muitos diretores maneiristas das décadas de 70 e 80 retornaram ao noir). Se o maneirismo diz respeito ao cinema como um todo, uma arte amadurecida e sem novas possibilidades que levava os seus diretores a recorrer ao clássico, mas exagerá-lo, o neo noir não tem tanto uma “obrigação” pela extrapolação, mas, como o maneirismo, é uma visão do presente sobre algo do passado. Neste caso, é perceber o noir como uma matriz inalcançável, impossível de replicá-la sem soar ultrapassado. Por isso, cabe aos cineastas lidarem com esse estilo sob uma nova perspectiva.
É sob tal premissa que grandes diretores retornaram ao noir para criarem obras contemporâneas. Com isso, vimos os Irmãos Coen inserir o gênero na lógica de seu cinema exagerado e cético, enquanto Robert Altman o fez sob diferentes perspectivas, seja mais desesperançosa (“O Perigoso Adeus”) ou satírica (“O Jogador”), Rian Johnson o trouxe ao coming of age (“A Ponta de um Crime”), David Lynch para o surrealismo (“A Estrada Perdida”, “Veludo Azul” e “Cidade dos Sonhos), Ridley Scott para o cyberpunk (“Blade Runner”), Robert Rodriguez no quadrinesco (“Sin City”), além de tantos outros. Quando o noir parecia ficar meio esquecido, Guillermo Del Toro se aproveitou dele para fazer um remake gótico e fantástico em “O Beco do Pesadelo” e Matt Reeves o fundiu ao super-herói detetive mais querido do mundo em The Batman.
Ao longo dos últimos 60 anos, ficou claro que o noir é um objeto fílmico bastante rico e as possibilidades para explorá-lo parecem infinitas até hoje. É tal perspectiva que torna “Sombras de um Crime” ainda mais frustrante. É bem verdade que o filme é bem problemático como peça individual mesmo. São quase duas horas de Liam Neeson perguntando aos personagens se eles conhecem outros personagens, tornando até a investigação tediosa. Mas quando o colocamos em sua posição de um filme que lida com o noir mais de 60 anos após o “fim” desse gênero, a obra de Jordan vai ainda mais por água abaixo.
Mesmo os neo noir mais tradicionais, como “L. A. Cidade Proibida” e “Chinatown” (dois grandes filmes), funcionam dentro de seus contextos históricos. O primeiro no cinema dos anos 90 que via um retorno dos longas de crime e policiais. O segundo como uma obra política e cética que tinha a cara da Nova Hollywood dos anos 70. Já Jordan, diretor algum dia reverenciado, parece incapaz de criar algo de próprio a partir do gênero. Com isso, ele recorre a Phillip Marlowe, um dos detetives mais antigos e famosos, protagonista de diversas obras na literatura e no cinema, entre elas “À Beira do Abismo” e o já citado “O Perigoso Adeus”. E a única ideia diferente do filme é transformá-lo em alguém cansado e velho, o que o filme faz questão de reforçar incansavelmente e só vai ter um efeito prático interessante e contemporâneo em sua relação (ou não relação) com a femme fatale (Diane Kruger).
De resto, Jordan parece confortável apenas replicando convenções sob uma perspectiva de homenagem vazia, como quando aleatoriamente cita o falcão maltês (objeto que dá nome a um dos filmes que catapultou o noir no início dos anos 40). É inegável que o diretor conhece o gênero e seus códigos. Temos não só uma, mas duas femme fatale, o chapéu e a atitude de Marlowe, a investigação que ao invés de se resolver vai se abrindo cada vez mais, o clima conspiratório, o crime nebuloso, as sombras e por aí vai. O problema é que o cineasta não propõe nada de pessoal com esses elementos, nem mesmo aquele que está no filme o tempo todo e ele nunca percebe: o humor autodepreciativo. “Sombras de um Crime” soa como uma paródia, todos os elementos e piadas estão ali prestes a dar mais personalidade para a obra. Mas Jordan prefere se manter em uma posição fetichista, uma seriedade disposta apenas a referenciar o que vem sendo feito desde os anos 1940. É para lá de frustrante.