|Crítica| 'Raquel 1:1' (2023) - Dir. Mariana Bastos
Crítica por Victor Russo.
'Raquel 1:1' / O2 Play
|
“Raquel 1:1” esboça uma discussão interessante sobre a revisão de dogmas religiosos e a intolerância que proíbe tal mudança, mas desliza em um clímax com medo de sujar as mãos
Acho sempre bastante curioso quando obras gêmeas surgem no cinema, daquelas bastante parecidas e lançadas muito próximas. Em alguma medida, é o caso de “Raquel 1:1” e “Medusa”, filmes brasileiros que chegam aos cinemas no mesmo mês e foram exibidos em festivais pela primeira vez no começo de 2022 e no final de 2021, respectivamente. Claro que há muitas diferenças entre elas, a começar que a segunda é uma distopia e a primeira não, além da protagonista e do rumo dado à história serem bem diferentes. Ao mesmo tempo, ambas se passam em uma cidade do interior brasileiro, extremamente religiosa, com uma protagonista que se envolve com a igreja local e é atacada por essa mesma instituição que os filmes em grande medida ridicularizam, são dominadas por um elenco feminino, além de apresentarem uma espécie de entidade local revolucionária.
Em “Raquel 1:1”, Valentina Herszage se transforma em uma espécie de Joana D’arc contemporânea. Aqui, o “chamado de Deus” é mais nebuloso e sua luta é progressista. Se a Bíblia, escrita apenas por homens, já foi reescrita diversas vezes e gera as mais variadas interpretações para as parábolas dependendo da vertente do cristianismo e os interesses de quem as explica, por que não reescrevê-la a fim de ir no cerne daquilo que os próprios cristãos teoricamente acreditam, de que todos são iguais perante Deus? A proposta de Raquel deveria soar simples, apenas repensar passagens misóginas que transformam mulheres em submissas ou vilãs.
É nesse momento que ela vai encontrar um enfrentamento que em grande parte nos leva de volta a “Medusa”. Essa igreja evangélica local é retratada de forma absurda, com personagens estúpidas a ponto de serem cômicas (a voz da filha e a falta de habilidade da mãe na hora de pregar são ressaltadas nesse sentido). Ao mesmo tempo, fica claro que justamente essa ignorância (ou mau caratismo em muitos casos) não tem nada de realmente engraçado. E é justamente nessa escalada dos ataques dessas pessoas a Raquel que o filme encontra sua maior força e ressoa a realidade de um país que levou um bobo da corte assassino à presidência da República. É o risco de enxergar certas piadas como inofensivas e não perceber a capacidade de ideias e seres estúpidos de cegar uma massa por meio de discursos proféticos.
Porém, se por um lado, “Raquel 1:1” encena bem esse terror crescente e psicológico, transformando situações cômicas e absurdas em algo cada vez mais sério e perigoso, por outro, ele derrapa justamente ao tentar se colocar a todo custo na principal tendência do gênero atualmente, o que alguns chamariam erroneamente de “pós-terror” ou “terror elevado”, mas na prática é apenas um terror com foco no drama das personagens e que rejeita quase sempre a frontalidade visual e das ações em prol apenas do simbolismo.
Assim, “Raquel 1:1” até se usa bem de muitos símbolos ou de escolhas mais estilísticas que reforçam o tema central, como a utilização de uma espécie de vozes em off na cabeça da protagonista para contar o ocorrido com a mãe dela sem precisar mostrar visualmente aquela violência horrível. O problema é que a todo momento a narrativa se coloca em uma posição de dar uma resposta mais direta, frontal, visual e catártica para o construído. Põe a protagonista em um lugar não de mártir, mas de Carrie (“a estranha”). Entretanto, na hora de resolver aquela panela de pressão prestes a explodir, o longa tem medo de sujar as mãos e sai pelo caminho mais fácil, o mais “artisticamente aceito” e “profundo” alguns diriam. Rejeita então a catarse e dá ao público apenas uma resposta xoxa, um simbolismo sem graça que não faz de Raquel nem Joana D’arc e muito menos uma Carrie. Talvez essa ideia sem sentido de pós-terror tenha ido longe demais no cinema.