|Crítica| 'Queer' (2024) - Dir. Luca Guadagnino
Crítica por Victor Russo.
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'Queer' / MUBI e Paris Filmes
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Viagem de autodescobrimento é consequência de um filme em constante metamorfose e conflito, entre o clássico e o pós-moderno, mas de ponto de vista sempre definido
Luca Guadagnino vem para o seu segundo filme no ano (Rivais abriria o Festival de Veneza ano passado, mas foi adiado para 2024 por conta da greve do sindicato dos atores que proibia a participação dessas estrelas em festivais e materiais de divulgação) trazendo o corporal como a chave de sua filmografia, enquanto revela mais uma vez o quão diferentes são suas obras estilisticamente, ainda que cheias de personalidade e revelações evidentes do artifício cinematográfico. Assim, se o seu primeiro longa do ano passava por um relacionamento queer e era cheio de safadeza, o sexo só encontrava o seu orgasmo no plano final, deixando a sugestão das preliminares por toda a narrativa e apenas sugerindo o sexo, nunca o explicitando completamente, ao mesmo tempo que o jogo da montagem estava justamente na tríade de pontos de vista e na demonstração de força entre eles, Queer é quase oposto em tudo isso. O cineasta retorna ao romance que parte de um ponto de vista único, tendo em WIlliam (Daniel Craig) o voyeur que idealiza e até toca seu muso, literalmente inclusive, em um filme que explicita mais os corpos do que os sugere, mas nunca é capaz de alcançá-lo ou compreendê-lo, restringindo a comunicação e fazendo o protagonista sofrer e suar (de calor e de desespero), buscando na ayahuasca uma possível cura mágica, como se a telepatia resolvesse o seu problema de impossibilidade de comunicação. Nesse sentido, apesar de opostos etariamente na relação, William está mais para Enzo (Timothee Chalamet), de Me Chame Pelo Seu Nome, ou no que diz respeito à condução de narrativa, para as personagens de Suspiria (2018) e Até os Ossos, do que para qualquer um do trio de Rivais.
Ao mesmo tempo, Queer pouco se parece em sua feitura com qualquer desses longas, por um lado fazendo dessa viagem um exercício de estilo pós-moderno (com alguns traços maneiristas que vão lembrar Francis Ford Coppola, Dario Argento e R. W. Fassbinder), mas, por outro, partindo de uma percepção de decupagem bastante clássica. Como se a objetividade e economia clássicas fosses ganhando contornos hiperestilizados até que se desprendesse desse cinema fundador de percepção para se libertar em direção a uma incompreensão material completa da realidade, antes do personagem retornar ao seu lugar de partida, com certa sobriedade, mas já modificado por finalmente se compreender. São essas dicotomias que formam a narrativa e a tornam interessantes. Se filma o personagem e o que ele vê, corta para objetos ou animais, que podem até sugerir simbolismos, mas dizem respeito àquela ação momentânea, Guadagnino o faz em uma pequena cidadezinha mexicana que evidencia toda a sua artificialidade, quase aos moldes da Las Vegas de No Fundo do Coração. Mais do que isso, até quando não se desprende completamente da realidade, como nas habitações totalmente vermelhas, há toda uma construção de imagem que tende a rejeição da simplicidade, como quando o personagem entra no bar para falar com outro e se coloca na frente da luz, filmando-o de costas, criando uma grande sombra naquele que está sentado. Nesse sentido, o mistério em torno do protagonista, a forma como ele se porta, a cidade afastada e todo o jogo de luz e sombras, lembra bastante o cinema noir (mesmo que a narrativa nos leve inicialmente para um melodrama).
Assim, quando se entrega totalmente à psicodelia, Guadagnino rompe com a narrativa mais tradicional, mas, mesmo quando hipertiliza esses corpos no espaço ou o olhar, de forma até literal em um plano que remete bastante a Prelúdio Para Matar, mas segue o fazendo aos moldes de uma economia de enquadramentos, uma delicadeza no trato de seu personagem e como ele é retratado por meio de imagem. Tudo se resume a William no espaço, seja ele físico ou metafísico, solitário ou se tocando a outros corpos. A viagem termina então com um entendimento, ainda que tímido, desse personagem, não se tornando um telepata, mas percebendo finalmente o seu lugar naquele mundo hiperestilizado.