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|Crítica| 'Os Cinco Diabos' (2023) - Dir. Léa Mysius

|Crítica| 'Os Cinco Diabos' (2023) - Dir. Léa Mysius

Crítica por Victor Russo.

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'Os Cinco Diabos' / O2 Play & MUBI

 

Título Original: Les Cinq Diables (França)
Ano: 2023
Diretora: Léa Mysius
Elenco :Adèle Exarchopoulos, Swala Emati, Sally Dramé, Daphné Patakia e Moustapha Mbengue.
Duração: 96 min.
Nota: 3,5/5,0

 

“Os Cinco Diabos” mistura terror sobrenatural, ficção científica e mistério para olhar com desespero para a manutenção quase irreversível do preconceito

O novo longa de Léa Mysius abre in media res (no meio da ação), com um evento que é ao mesmo tempo passado e futuro do ponto em que a trama se inicia. Isso porque “Os Cinco Diabos” avança sempre em dois tempos, o presente a partir da chegada de Julia (Swala Emati), que parece abalar as estruturas daquela família, e o passado que reserva os mistérios para entender o agora, também desde a chegada de Julia, ainda jovem, àquela cidade. Tal estrutura, típica de um filme de mistério, ganha um significado novo quando entendemos um fator sobrenatural proveniente de um conceito semelhante à viagem no tempo (ficção científica). Então, se o foco de Mysius é abordar relações psicológicas e sociais, com o preconceito como tema central, ela o faz de uma forma menos escancarada e mais por meio de um interessante jogo com gêneros e pontos de vista cinematográficos.

Não é à toa que, se por um lado Julia e Joanne (Adèle Exarchopoulos) são as principais afetadas por toda a situação, por outro, faz muito sentido a escolha de centrar grande parte da narrativa pelos olhos e ações de Vicky (Sally Dramé). Primeiro, porque ela funciona como esse olhar do público que descobre junto com a personagem e vai desvendando esse mistério. Segundo, pois o filme não deseja simplesmente falar sobre a homossexualidade e a reação preconceituosa da sociedade para com esses casais, mas, principalmente, olhar para uma perpetuação dessas práticas, que vão sendo passadas para as gerações mais novas e se enraizam a partir do momento que encontram seres ainda em formação e mais vulneráveis àqueles “ensinamentos”. Isso fica claro não só nas ações de Vicky, mas também nas práticas racistas das outras crianças para com ela.

Então, Vicky vai deixando aos poucos de ser apenas a protagonista passiva com dons extraordinários e passa a ser a causa do problema. Claro, ela age por impulso juvenil, em parte, replicando práticas e sentimentos que reconhece nos adultos. Mas, no final, é ela a responsável por tudo de ruim que acontece com Julia, e, consequentemente, com Joanne. É a partir dessa manuntenção de uma prática preconceituosa que Julia não só é julgada por ser lésbica e negra (reparem como as outras agem quando ela se apresenta para a equipe de ginástica), mas também na vilanização dela como “louca”, uma saída comum para a destruição da vida de mulheres.

Dessa forma, Mysius ressignifica esses elementos de gênero, fazendo-os funcionar diferentemente para as personagens e para o público. O terror sobrenatural na figura de uma assombração, por exemplo, só existe para Julia, já que o público entende que aquela menina não é uma assombração, mas, sim, Vicky em uma espécie de viagem no tempo graças a um “poder” que o longa nunca explica realmente, decisão essa acertada, pois tais elementos de gênero potencializam o seu poder quando entendidos como mensagem, sem a necessidade de uma lógica tão definida.

Algo semelhante acontece com o mistério que conduz a trama. Mas, nesse caso, o efeito é o oposto. As personagens já sabem o que aconteceu, enquanto o público está no escuro. É justamente a escolha temporal de ir preenchendo as lacunas que dão força para “Os Cinco Diabos”. Enquanto o filme vai preenchendo o passado para o público a partir da ação das personagens, não só entendemos o que ficou para trás, como o porquê de Joanne nadar na água gelada, a razão da relação dela com o marido ser quase isenta de contato ou mesmo a importância da personagem de Daphné Patakia, como também deslocamos o nosso interesse para o futuro, que, no final, é um definidor da ideia do longa. O preconceito passado de geração em geração por meio de “receptores” em formação é compreendida. Mas isso pode ser mudado? Uma conscientização maior dessas crianças pode ser a solução? Os casais homossexuais podem ser felizes (na vida e no cinema, já que os filmes LGBTQIA+ geralmente têm finais trágicos)? Tais respostas só vão surgir quando o passado for compreendido, pelo público e pelos personagens.

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