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|Crítica| 'O Acidente' (2023) - Dir. Bruno Carboni

|Crítica| 'O Acidente' (2023) - Dir. Bruno Carboni

Crítica por Raissa Ferreira.

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'O Acidente' / Vulcana Cinema

 

Título Original: O Acidente (Brasil)
Ano: 2023
Diretor: Bruno Carboni
Elenco : Carol Martins, Gabriela Greco, Luis Felipe Xavier, Carina Sehn e Marcello Crawshaw.
Duração: 95 min.
Nota: 3,5/5,0

 

Bruno Carboni aposta no afastamento das emoções e na falta de comunicação para reconstruir a colisão entre os dois lados da sociedade brasileira

A onda de filmes nacionais que tentam digerir o mal-estar político que partilhamos nos últimos anos segue rendendo frutos e o longa de Bruno Carboni é mais um exemplo disso, mas dessa vez, com uma construção mais segura de suas escolhas. Muitas obras recentes carregam uma falta de esperança como reação à direita conservadora que se levantou com força desde 2018 no Brasil, mas, ocorre que alguns desses filmes se escoram em diálogos expositivos nem sempre tão bons, que acabam diminuindo alguns discursos, e parecem não confiar totalmente em suas decisões criativas para transmitirem suas mensagens sem esse apoio quase didático. “O Acidente” vai por outro caminho e se garante muito mais na construção gradual da narrativa, que se faz entender sem grandes malabarismos dramáticos ou textuais. A apatia se mistura a esse clima de falta de esperança, tornando as interações entre os personagens algo estranho e a ser desvendado, um mistério que vive na convivência entre diferentes, que beirou o insuportável nos últimos cinco anos. Contudo, o diretor trabalha sutilmente a polarização da sociedade, fugindo do melodrama e lembrando muito o cinema de Lucrecia Martel, trabalhando as emoções num campo muito mais imagético, trazendo transtornos internos para uma câmera que por vezes até desloca seus personagens nos planos. O drama de Joana (Carol Martins) é muito silencioso, em que o filme dá uma distância que a permite agir de acordo com seus sentimentos, mas nunca nos dá acesso aos seus pensamentos. Porém, mesmo que seja distante e apático, o longa constrói uma tensão de que algo grande vai acontecer, como uma bomba prestes a explodir, que carrega o ritmo e o interesse na narrativa até o fim.

É interessante que ainda que muitas características de seus personagens sejam baseadas em clichês (como a lésbica, ciclista, de franjinha e com uma breve alusão ao veganismo), existe sempre um mistério sobre todos eles que os torna mais autênticos do que caricaturas batidas. Acompanhamos Joana e vamos a conhecendo, mas não entendemos logo de cara sua relação com a motorista que a atropela - e esse é o primeiro grande estranhamento do filme - nem com os outros ao seu redor. Descobrimos aos poucos detalhes sobre sua vida, nunca escancarados, mas revelados gradualmente na narrativa de forma natural. O pedido de Cleber (Marcello Crawshaw) de colocar o filho no colégio militar já é suficiente para contextualizar o abismo que separa essas duas famílias e assim, o longa trabalha nos detalhes a colisão desses mundos tão presentes em nossa sociedade. Mesmo que seja claro que Joana vive diversas questões internas que a fazem se enfiar nessa problemática dinâmica familiar, nunca nos aproximamos realmente dela, tentamos decifrar suas atitudes assim como ela faz com o menino Maicon (Luis Felipe Xavier), mas, ao contrário dele que acaba se abrindo em alguns lapsos, Joana só dá alguns sinais, como quando observa emocionada as imagens do bebê que iria ter. É essa distância que torna as interações mais complexas e a narrativa toda mais interessante, dando pistas de que a qualquer momento um grande embate pode acontecer.

A montagem também ajuda a carregar o longa de forma mais dinâmica, bem como reforça o estranhamento que permeia a obra. Ainda que tudo seja frio, afastado e até lento, os planos seguem numa continuidade quase imediata, mesmo que um grande tempo passe entre eles, como se Joana fosse jogada através dos acontecimentos, empurrada pela vida. As escolhas de Bruno Carboni traduzem bem a imprevisibilidade de viver nesse país que não sabíamos para onde ía (se é que agora sabemos), onde toda pessoa que cruza nosso caminho pode ser um potencial inimigo. Assim, todas as relações (entre desconhecidos ou entre conhecidos) são afastadas e falta muito afeto físico, podendo contar nos dedos quantas vezes os corpos se tocam com alguma boa intenção. Todos estão bastante deslocados nesse mundo, é aquela falta de esperança já mencionada, que aqui se faz presente isolando as pessoas sem construir grandes conflitos diretos entre elas e com uma comunicação que nunca se dá abertamente. É um universo de pessoas tristes que não conseguem se comunicar, nem para brigar, nem para resolver nada, uma impossibilidade que enxerga uma ponte na relação entre Joana e Maicon, mas que nunca atravessa de fato os dois polos. 

O filme pode ser um exercício como o do menino, de gravar um momento para o olhar com outros olhos posteriormente, mas talvez ainda seja muito cedo para nós. A solução que Carboni propõe é clara, uma conciliação por meio do afeto, que poderia até soar mais cafona, não fosse a construção leve que ele dá. Deixa um gosto estranho no fim, mas não tira valor de seu todo.

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