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|Crítica| 'Music' (2024) - Dir. Angela Schanelec

|Crítica| 'Music' (2024) - Dir. Angela Schanelec

Crítica por Raissa Ferreira.

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'Music' / Zeta Filmes

 

Título Original: Music (Alemanha)
Ano: 2024
Diretora: Angela Schanelec
Elenco : Aliocha Schneider, Agathe Bonitzer, Marissa Triantafyllido e Argyris Xafis.
Duração: 108 min.
Nota: 3,5/5,0
 

Removendo a necessidade de seduzir o espectador emocionalmente, Angela Schanelec trabalha seu tempo e espaço de forma minimalista em uma tragédia cíclica 

A escuridão só dá as caras em Music uma única vez, é como se ao amanhecer naquele dia, nunca mais anoitecesse nesse mundo. A luz permanece em uma constante, sempre claro, quente pelo sol, como um verão tímido, e os cenários rochosos retornam a todo momento, como um lembrete da origem dessa história, o nascimento abandonado no meio de uma montanha, cercado por pedras. Muita coisa é permanente na narrativa e as elipses são imperceptíveis, o que transforma o filme em uma linha plana onde passado, presente e futuro parecem se dissolver, o tempo passa mas Jon não muda, só envelhece uma única vez entre um bebê e um jovem adulto, identificado pelas feridas em seus pés. Angela Schanelec dá indicações soltas do que conecta e o que pode ser compreendido em Music, mas cabe ao espectador fazer o esforço de as unir. A diretora quase sempre resolve tudo em planos maiores e mais amplos, com pessoas espalhadas pela tela ou movimentando lentamente sua câmera para revelar outras ações, às vezes se afasta tanto que é quase impossível saber quem são as pessoas em cena, e as paisagens naturais se tornam mais protagonistas, fundamentais para a narrativa, mas, existem momentos em que se aproxima - como um plano fechado nos pés do bebê que se liga aos pés feridos do Jon adulto - ou utiliza o diálogo para quebrar o silêncio e revelar algo. Em geral, o longa remove completamente a necessidade de incitar emoções no espectador, mas não é totalmente frio ou apático por isso. Não é na obviedade e na sedução dos closes em rostos que encontra sentimentos em seus personagens, mas ao se aproximar de suas mãos se tocando, seus pés, braços e, principalmente, pela música.

A tragédia bastante grega, dada por seus cenários e atmosfera, é cíclica, uma repetição presente ao longo da vida, com as pedras quase como presságios. São as montanhas rochosas que ouvem os gritos do homem que mais na frente será empurrado e morto com a cabeça no cascalho, onde novamente gritos ecoarão em consequência, as únicas vezes que veremos rompantes sonoros de comoção. São essas mesmas formas da natureza que irão presenciar o suícidio de Iro, ser suas cúmplices ao esconder suas roupas e se transformar nas calçadas da cidade Alemã em que outra cabeça, de outro homem, se deitará ensanguentada. São cenas que se refletem como um espelho complexo, em que quem assiste é convidado a buscar suas semelhanças e identificar seus rumos, um mesmo óculos, uma lembrança quase onírica de algo que já foi assistido, tudo lentamente apresentando, como pistas bagunçadas e fora de ordem, enquanto o tempo se dilata nos longos planos. A trama é quase imperceptível, caminha como Iro ao realizar uma tarefa, silenciosa, com destino certo, sem demonstrar emoções no processo. Essa encenação que remete ao teatro, mas também às pinturas, em que tudo consegue se resolver em uma mesma janela, se alterna a uma busca por detalhes que sempre foge dos sentimentos mais pungentes do drama, não vai de encontro aos rostos, por exemplo, quando algo é sentido, os remove de cena para olhar para as mãos ou pés. 

Embora monte momentos afetuosos em seus gestos, é na música que realmente mora sua intenção mais sentimental. Essa também fica entre dois pontos, dos cantos líricos às músicas modernas cantadas em inglês, sempre revelando letra e melodia como suas maiores forças, em longos planos mais abertos e estáticos concentrados em quem canta e toca, ou deixando as fitas preencherem os espaços enquanto Iro e Jon se comunicam por meio delas. Assim como os diálogos são raros, as cenas cantadas não são muitas, pontuadas e espaçadas. Angela Schanelec é uma economista em Music, de poucos planos, palavras e elementos, consegue tirar algo impactante que vai contra tudo que o cinema atual tem buscado, sem respostas rápidas, estímulos ou a necessidade de encontrar identificação em sua história, toda sua redução engrandece seu trabalho de direção e espera uma entrega paciente de quem assiste para desbravar seu potencial dramático e misterioso. 

Ao passo que seus planos se unem formando uma unidade em que o tempo parece apenas uma sugestão que avança sem notarmos, o longa se torna um convite quase meditativo aos ciclos trágicos da vida que se pauta em mitos para existir, mas não depende deles. Édipo se dá por seus elementos mas se espalha pelo filme em uma releitura muito própria que constrói a simbologia principalmente com o mundo ao seu redor e todas as coisas que o pertencem, o mar, as pedras, as pessoas formando famílias e seguindo suas vidas enquanto as repetições ocorrem, incapazes de parar o eterno reflexo. 

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