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|Crítica| 'Mundo Novo' (2024) - Dir. Alvaro Campos

|Crítica| 'Mundo Novo' (2024) - Dir. Alvaro Campos

Críica por Raissa Ferreira.

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'Mundo Novo' / O2 Play

 

Título Original: Mundo Novo (Brasil)
Ano: 2024
Diretor: Alvaro Campos
Elenco : Tati Villela, Kadu Garcia, Melissa Arievo, Nino Bastida e Polly Marinho.
Duração: 84 min.
Nota: 3,5/5,0

 

Com velhos preconceitos e hipocrisias na mesa, Alvaro Campos dá uma dimensão complexa ao minimalismo com que trabalha para discutir problemáticas que atravessam o tempo

A fotografia em preto e branco pode até se disfarçar nos primeiros segundos, pelo cinza das cidades, mas se estabelece fundamentalmente na diferença do casal principal. Conceição (Tati Villela), uma mulher negra, olha pela janela enquanto faz planos para o futuro com o namorado branco, Presto (Nino Bastida), em uma época em que até mesmo imaginar o amanhã já era ousadia. Mundo Novo lida com desigualdades, sobe o morro do Rio de Janeiro para adentrar uma casa grande de gente branca abastada, e quem abre o portão é outra mulher negra, mas como forma de serviço, não de anfitriã. Alvaro Campos lida muito bem com esse espaço e as poucas pessoas que transitam em sua encenação, sendo capaz de criar uma dimensão muito maior e mais complexa, de mundo, e de sociedade, enquanto os quatro, cinco ou seis personagens entram em embates ambientados pelo silêncio do isolamento. São feitos simples que dizem o que precisa ser colocado, Kelly (Melissa Arievo) usa sapatos em casa enquanto os outros usam chinelos, suas mãos estão sempre ocupadas servindo ou limpando algo, de cara fechada e sem paciência, com razão. Cons é alta, imponente, bem estabelecida como advogada, mas se vê tímida e apequenada enquanto aqueles homens a julgam silenciosamente. É como se Charles e o marido formassem uma nova família tradicional brasileira, um casal gay tido como progressista que carrega quase clandestinamente um preconceito muito antigo, mas não é objetivo simples desse filme colocar Cons e Presto como um futuro mais otimista e desafiador, a relação entre ambos carrega detalhes mais complexos, enquanto tudo é atravessado por um debate racial afiado.

Talvez a escolha de altura dos atores diga alguma coisa, já que Conceição é uma mulher imponente e desenrolada, é ela que dá a cara a tapa, resolve as coisas, ganha a grana e trabalha duro em uma profissão muito bem vista. Ao seu lado, pequeno e mirrado, Presto é grafiteiro e pouco tenta monetizar sua arte, é jovem, vive em uma república e a cada obstáculo, se acovarda, deixando que sua namorada resolva. A busca pela assinatura como fiador do irmão endinheirado pelo mercado financeiro se mostra uma jornada que poderia ser mais humilhante, não fosse a força de Cons e seu apoio familiar. Mundo Novo existe na pandemia, mas fora o contexto e as máscaras, esse novo mundo que ele explora é muito mais sobre as classes sociais e a desigualdade racial que se adaptou ao futuro, do que sobre a doença já quase esquecida agora, no lançamento do longa. Essa dinâmica de embate muito bem construída por Campos usa as pequenas violências já comuns na sociedade, mas não se pauta apenas pelo óbvio. A relação entre Cons e Presto discute outras nuances, do afeto negado a mulheres negras e como ela encontra nesse playboy acomodado um amor que acredita lhe ser suficiente, da dificuldade do parceiro em lutar ao lado dela e compreender os preconceitos que enfrenta e como, mesmo com todos os sinais negativos. Suas irmãs permanecem ao seu lado, no acolhimento, em contraste ao irmão de Presto que se estabelece como um inimigo passivo-agressivo. 

As questões também são trabalhadas geograficamente, da grande casa com vista para o mar e também para as favelas, se colocando imponentemente, a como os personagens transitam pelo morro para buscar um baseado enquanto nas motos, Presto tira fotos das ruas com o celular e Cons paga mais barato na corrida. É tido como óbvio para o casal branco classe média que a namorada negra tenha suas origens nas comunidades, é normal para eles colocar a mulher que trabalha em sua casa isolada e afastada da própria família para cozinhar e limpar suas sujeiras, coisas tão incrustadas no nosso entendimento que a própria Cons não se mostra nem surpresa nem indignada. Mas, todas essas questões se empilham e a cada conflito sufocado, estabelecido em diálogos que não permitem que tudo chegue ao ponto de explosão, e sim mantido numa panela de pressão sem válvula de escape, o espectador se sente acumulando revoltas e respostas não ditas. 

Com pouco espaço, nenhuma cor e poucos personagens, Alvaro Campos vai montando toda uma sociedade em que vivemos por meio de sua trama simples, mas profunda. O mundo pode ser novo, mas as hipocrisias e preconceitos são antigos e persistem, a desigualdade se adapta mas não deixa de existir, pelo contrário, talvez esteja até piorando e não entregar um desfecho claro à grande mulher que é Cons, com seu pequeno namorado, não é deixar em aberto o futuro romântico desse casal, mas estabelecer que existem mais perguntas, dúvidas e questões abertas no debate racial hoje, que ainda precisam ser resolvidas, e nenhuma solução será encontrada na mesa de uma família branca que detém algum poder pela caneta. 

 

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