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|Crítica Mostra 2023| 'Sem Coração' (2023) - Dir. Nara Normande & Tião

|Crítica Mostra 2023| 'Sem Coração' (2023) - Dir. Nara Normande & Tião

Crítica por Victor Russo.

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'Sem Coração' / Vitrine Filmes

 

Título Original: Sem Coração (Brasil)
Ano: 2023
Diretores:  Nara Normande e Tião
Elenco : Maya de Vicq, Eduarda Samara, Maeve Jinkings e Erom Cordeiro.
Duração: 91 min.
Nota: 4,0/5,0

 

Nara Normande e Tião encontram na juventude nostálgica e simplicidade o lugar perfeito para uma união que supera às classes e permite a harmonia com a natureza

Na sequência inicial, quando vemos, a que depois será chamada de Sem Coração, (Eduarda Samara) em seu mergulho, frente a frente com uma bela e grande raia, Nara e Tião abrem o plano, colocam personagem e animal não só em uma posição de igualdade, mas dão um tom sublime, uma aura mística para aquele animal paralisado nas águas azuis com uma luz celestial refletindo tudo. Por mais que no plano seguinte vejamos a personagem saindo da água com um animal na mão, aqui o olhar não é predatório, é de subsistência, um convívio harmonioso e não exploratório daqueles seres belos que se apresentam embaixo da água, visão que retornará outras vezes, sempre que o longa flerta com o sobrenatural por meio de Sem Coração e Tamara (Maya de Vicq). Tal conexão entre elas e delas para com a natureza vai ser ampliada para todos aqueles seres mais ingênuos que vemos no longa, um grupo de jovens ainda amadurecendo, descobrindo sua sexualidade, as formas de prazer e, principalmente, unidos por laços difíceis de descrever, mas muito sentidos em tela.

"Sem Coração” ser uma releitura ampliada do curta de 2014 e de mesmo nome da dupla de cineastas diz muito sobre tudo o que vemos no longa. Não se trata de um filme que chame atenção pelo esforço, pela dificuldade de planos e trama rebuscados, empenho esse que muitas vezes é visto automaticamente como qualidade, o que está longe de ser verdade. A obra de 2023 traz consigo uma simplicidade genuína, da beleza nos pequenos gestos, no olhar sincero para os seus personagens enquanto indivíduos e, principalmente, como grupo. Retornar então a essa praia no nordeste brasileiro, é também voltar a mística do local e de seus personagens. A história pode ser outra, mas o sentimento do local se apresenta como a alma do filme. Daqueles filmes que só poderiam acontecer com aquele lugar específico moldando os personagens. É a simplicidade estética envolta no que há de mais poderoso dramaticamente.

Curioso perceber a diferença sobretudo dessas crianças com os adultos, dos vizinhos caricatos, passando pelo pai agressivo de Galego, até chegar nos relativamente tranquilos pais de Tamara. É como se esses seres mais velhos estivessem presos à força à realidade do mundo, ao modelo econômico estabelecido e a todos os preceitos e preconceitos que somos levados a acreditar como verdades absolutas. Então, se os jovens invadem a casa do vizinho não é necessariamente como uma resistência furiosa ou com o intuito maligno de destruir o local. Eles enxergam ali um luxo que não têm e nele a possibilidade de se divertir genuinamente como os jovens em formação que são. Essa diferença fica clara quando Maeve Jenkins reforça para os garotos a importância de respeitar a propriedade privada como a coisa mais importante da nossa sociedade, o que o capitalismo e sua noção de individualidade bombardeiam em nós diariamente. Os garotos não enxergam dessa forma. Até sabem que não deveriam estar no local, mas não entendem essa limitação divisiva que foi imposta na nossa sociedade. Eles querem ficar juntos e livres.

Esse senso de comunidade move o longa, com a realidade até batendo na porta com a anunciada viagem de Tamara para morar em Brasília, uma lembrança de que aqueles jovens pertencem a diferentes realidades econômicas e, com isso, foi estabelecido a eles diferentes futuros. Mas isso em nenhum momento transparece em como esses garotos agem entre si. As distintas realidades e sexualidades são aceitas, não há julgamentos por parte de nenhum deles. Mesmo Galego, que acabou de retornar da Febem, é recebido de braços abertos e tem espaço até para se abrir com o resto, o tipo de relação emocional que raramente é vista em homens adultos, que geralmente enxergam isso como fraqueza. Essa mesma união e respeito está presente também na relação desses jovens para com a natureza. É como se aquele lugar, moldado por aqueles jovens, estivesse alheio ao mundo externo. Como se ali o senso de comunidade fosse tão forte que jogasse para longe todas as barreiras que a sociedade construiu. E, por mais que haja um certo ar de nostalgia pessoal aqui com os anos 90, aquela praia, aquele mar e os jovens que formam essa parceria trazem consigo uma força perpétua.

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