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|Crítica Mostra 2023| 'Juventude (Primavera)' (2023) - Dir. Wang Bing

|Crítica Mostra 2023| 'Juventude (Primavera)' (2023) - Dir. Wang Bing

Crítica por Raissa Ferreira.

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'Juventude (Primavera)' / Wang Bing

 

Título Original: Youth (Spring) (China)
Ano: 2023
Diretor: Wang Bing
Elenco : -
Duração: 212 min.
Nota: 4,0/5,0

 

Wang Bing integra os operários ao maquinário, ressaltando as condições ao redor, mas nunca esquecendo a humanidade dessas pessoas aprisionadas

O que mais chama atenção nos impactos iniciais de “Juventude (Primavera)” é como o diretor e sua equipe parecem apenas moscas observando aquela rotina de trabalho, em uma das muitas oficinas que o filme visita, onde os trabalhadores agem como se não houvesse ninguém ali olhando ou filmando. Essa sensação sofrerá uma mutação durante as mais de três horas do documentário, ressignificando a cada etapa a presença desse aparato cinematográfico e sua relação com seus objetos de análise. É assim em muitos aspectos que o longa se desenvolve, sua longa duração não é um recurso para expandir o tempo ou fazer caber o maior material possível, mas sim um elemento muito bem usado pelo diretor para dar forma à sua narrativa e construir um discurso sólido. Foram 5 anos que a equipe de filmagens passou entre diferentes pontos de trabalho que, na verdade, não se diferem tanto assim e, mesmo através do tempo e em condições mutáveis, Wang Bing entrega uma unidade estética que condensa cada um desses núcleos, como se todos fizessem parte de um mesmo bloco. Os prédios que abrigam as oficinas e dormitórios dos trabalhadores são todos parecidos, em suas estruturas físicas, mas também em como funcionam e são organizados (ou desorganizados, devo dizer). Da mesma forma, as reclamações e situações vividas pelos operários vão se aproximando, mesmo que tenhamos histórias de pessoas com 16 anos e até mais de 30, há muito que une essas pessoas e suas vidas, sempre pelo trabalho. Por mais duro que esse retrato pareça ser, não há intenção no filme em um pesar que lamente essas sinas laboriosas, mas sim que proponha um olhar além da máquina, para os seres humanos ali.

Ao longo das horas, a relação dos trabalhadores com a equipe de filmagem vai se transformando. Se no começo quase não era perceptível que alguém estava ali de fato gravando tudo, logo vemos a câmera se movimentar, dar sinais de existência para nós, se aproximar de uma ou outra história ali que aponte um interesse. É como se Wang Bing estivesse construindo um relacionamento, de primeira tímido, mas que depois começa a se enturmar, e sua câmera fica mais livre, observa alguém passar e resolve seguir aquele olhar ou chega mais perto para escutar alguma conversa. Até o ponto em que estamos tão acostumados que os observados finalmente reconhecem seus espectadores e, em alguns momentos, essa linha invisível é cruzada e o filme se torna uma consciência geral, em que os operários não apenas interagem com a equipe, como também se mostram conscientes de que são parte essencial daquele projeto, bem como de suas máquinas de costura. Tudo é gradual aqui, não se apoiando num cinema mais lento, mas sim realmente tomando seu tempo para que cada acontecimento se desenvolva. Assim como surge a ciência do voyeur, as reclamações trabalhistas, embates com os chefes e a perspectiva de vida além das prisões das roupas confeccionadas, são elaboradas ato a ato, núcleo a núcleo, sempre os ligando numa onda de consciência que parece atravessar o filme para concluir algo com o espectador, que depois de todo esse processo, também se sente parte de tudo.

Nesse caminho, vemos de uma reunião sobre o aborto de uma das funcionárias, sendo discutido de acordo com sua produtividade entre seus chefes e familiares, até o momento em que diversos operários começam a debater melhores pagamentos com seus empregadores, fatos sem ligação direta. Mesmo que não exista uma atmosfera pesarosa, sempre levantada pelas personalidades, desejos e jeitos joviais dessas pessoas, os espaços apertados, com materiais e bagunças acumuladas por todos os lados, e os prédios todos iguais que também os aglomeram, criam essa sensação de que estamos observando apenas um mesmo lugar, um presídio, do qual não há outro caminho para se viver. Ver esses jovens, e alguns mais adultos, vivendo suas vidas além das máquinas, nunca é muito além disso, suas brincadeiras, relacionamentos, sonhos e vontades, estão sempre também atrelados a esse espaço físico, seja da costura ou dos quartos em que precisam ficar para trabalharem meses sem voltar para casa. Nesse cenário o dinheiro também é rei, Wang Bing faz questão de mostrar cada troca de cédulas, muito novinhas, lisinhas e brilhantes, sendo entregues aos bolos pelas peças fabricadas. Até parece que é um dinheiro incrível pelo montante e pelos zeros que lemos nas legendas, mas claramente as condições do todo não atestam isso. Os números sempre presentes, em conversas, riscados nas paredes e em reclamações, pontuam que essas vidas dependem desse dinheiro para algo que existe além do que assistimos, toda uma existência fora do aprisionamento que nunca conheceremos realmente, e talvez eles bem pouco também.

Ainda que se apresente um tom de muita conformidade dos trabalhadores com essa rotina, numa estética que não nos mostra nenhuma perspectiva além, mas também pela própria forma como eles se portam, com pouca esperança de conquistar algo mais do que uns centavos de aumento, “Juventude (Primavera)”  floresce devagar em sua narrativa, assim como tudo, e chega a algo próximo de uma libertação para ao menos alguns de seus personagens, e ao menos visualmente, para nós. Os debates com chefes que ocorrem nos diversos pontos que Bing filma se unem enquanto o ritmo frenético das máquinas de costura começa a desacelerar, até que finalmente vemos uma casa de verdade, com natureza ao redor, longe dos alojamentos que parecem prisões. O contraste aqui é também muito relevante em todo o longa, que trabalha contrapontos interessantes pelo som forte das máquinas dominando os ambientes, parando quando os operários podem sair um pouco de suas salas, ou quando depois de muitos minutos observando alguém costurar, seus braços e pernas parecem engrenagens grudadas no maquinário, mas logo depois há um respiro, uma brincadeira ou uma música tocando. 

Wang Bing quer que olhemos essas pessoas como parte de um sistema complexo, que entendamos suas dificuldades, problemas e condições, mas também que esse olhar humano mais leve nunca se perca nem caia em uma romantização de sofrimento. Assim, os chefes das oficinas também não são os mais vilanizados, ainda que tenham sua grande parcela bem distribuída aqui, o longa se preocupa muito mais num cenário maior, de um inimigo que não podemos ver, mas sabemos que exerce a maior culpa. Esse propósito resulta em uma obra que não individualiza suas questões, ainda que saibamos os nomes, idades e cidades de cada trabalhador, e tenhamos acompanhado tantos momentos pessoais, existe sempre esse distanciamento que une suas histórias em uma peça maior, uma observação sobre todo um sistema falido e opressivo que consome tantas vidas por apenas alguns trocados. 

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