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|Crítica| 'Môa, Raiz Afro Mãe' (2023) - Dir. Gustavo McNair

|Crítica| 'Môa, Raiz Afro Mãe' (2023) - Dir. Gustavo McNair

Crítica por Victor Russo.

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'Môa, Raiz Afro Mãe' / O2 Play

 

Título Original: Môa, Raiz Afro Mãe (Brasil)
Ano: 2023
Diretor: Gustavo McNair
Elenco : Gilberto Gil, Letieres Leite, Lazzo Matumbi, Fabiana Cozza e Arlete Soares.
Duração: 101 min.
Nota: 3,0/5,0
 

Didático e bastante tradicional, “Môa, Raiz Afro Mãe” constrói um interessante microcosmo em torno de seu protagonista e questiona o apagamento dessa história fora da Bahia

Constantemente falo do didatismo como um problema dominante no cinema atual, muitas vezes utilizado por um diretor (ou por pressão de estúdios) que subestima o seu público. Tal prática têm tornado os filmes cada vez mais expositivos e padronizado o gosto de um espectador que aceita a posição de ser não pensante, exigindo informações entregues da forma mais clara possível, e fazendo com que temas antes sugeridos/implícitos sejam agora verbalizados. Gustavo McNair se utiliza de uma lógica semelhante em seu documentário sobre Môa do Katendê, mas aqui tal abordagem vem carregada de uma ironia silenciosa.

É bem verdade que o longa é pouco inventivo, mantém o esquema padrão do talking heads + imagens de arquivo para construir uma biografia exaltando o seu protagonista, colocando-o em uma posição de ser inalcançável e a frente do seu tempo. Tal estrutura, sobretudo com a repetição das mesmas informações ditas por diferentes entrevistados, dificulta a fluidez da narrativa. Porém, aqui não há uma sensação de simplesmente subestimar o público pela falta de inteligência, e, sim, por uma falta de conhecimento, já que a informação é quase sempre centrada naquilo que o eixo sul-sudeste vê como relevante, apagando realidades e figuras importantes para a construção cultural brasileira.

Isso fica claro na escolha de Mcnair em focar bastante inicialmente em como Môa influenciou a música brasileira, como suas músicas e o gênero que criou foram adaptados por GMberto Gil, Caetano Veloso e outros grandes nomes, mas essa origem pouco é sabida na cultura popular brasileira, o que muda um pouco de figura quando vamos para Bahia. Tal discurso é reforçado quando o assassinato em 2018 foi majoritariamente reproduzido na mídia nacional como “crime de ódio contra o capoeirista”, reduzindo Môa a apenas uma de suas paixões e habilidades que influenciaram pessoas do mundo todo. 

Mcnair faz questão, então, de construir um retrato que faça justiça a essa figura tão importante na Bahia. Assim, o estado e sobretudo a capital, Salvador, transformam-se em uma espécie de microcosmo cultural tão forte que foi capaz de sobreviver e se desenvolver culturalmente mesmo durante os anos de forte repressão de um regime militar que controlou o país por mais de duas décadas. Isso nunca é dito realmente, a Ditadura aqui nem sequer é citada, o que torna ainda mais cruel a ironia de Môa ter sido assassinado por expor sua opinião mais de 30 anos após a redemocratização do país, refletindo esse reacionarismo que foi penetrando de forma indiscriminada pelas redes sociais.

Pode parecer que isso pouco tem a ver com a construção de Môa, um talento capaz de levar a música, a dança, a capoeira e tudo que tem de mais essencialmente brasileiro para o resto do país do mundo. Mas, na verdade, tudo está interligado. O protagonista aqui vai além da pessoa e seus feitos, ele é a representação do futuro que não esquece as raízes. Ao contrário do reacionarismo que olha para um passado inexistente e vangloria uma minoria poderosa e seus valores conservadores, Môa é esse avanço que não rejeita as verdadeiras raízes culturais. É o Brasil da miscigenação que vê nos povos originários da América da Sul e negro vindos da África há séculos uma base cultural diversa. Mas como o surgimento do Katendê (que ganha grande destaque aqui), o foco não é em simplesmente fazer justiça a partir do passado, mas olhar para frente, no desenvolvimento dessa cultura a partir do que veio antes e a adaptando para os novos tempos, seja pela mistura de diversas culturas, ritmos, olhares e conhecimentos ou mesmo pelo entendimento do tempo presente como um mundo material que não pode ser superado, mas é possível absorvê-lo em uma tradição. 

Dessa forma, o didatismo formal de “Môa” pode até atrapalhar o andamento do longa, mas, no fim, ele se revela como uma necessidade para um Brasil que não conhece suas origens, não entende seu passado, sua cultura e o seu futuro, transformando-se em presa fácil para o estrangeirismo que cria uma falsa noção de identidade nacional. Nesse sentido, Môa é a representação não só dessa Bahia como microcosmo cultural, mas da verdadeira tradição que se transforma em resistência.

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