|Crítica| 'Misericórdia' (2025) - Dir. Alain Guiraudie
Crítica por Victor Russo.
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'Misericórdia' / Zeta Filmes
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Alain Guiraudie nos torna cúmplices satisfeitos de seu protagonista fantasma de várias máscaras e negociações
Rapidamente, é possível perceber em Misericórdia uma releitura de Teorema, de Pier Paolo Pasolini, que já foi revisado um ano antes por Emerald Fennell em seu Saltburn. Félix Kysyl vive brilhantemente esse personagem misterioso que vem de fora e manipula uma dinâmica social pré-estabelecida para benefício próprio. Entretanto, desde a longa abertura em câmera subjetiva, que vemos o olhar de alguém dirigindo por estradas até adentrar uma pequena cidadezinha interiorana, para só então nos ser mostrado Jérémie (Kysyl) pela primeira vez, há uma aura meio fantasmagórica que ronda o personagem. O tardar a revelá-lo é justamente nos inserir na subjetividade dele, de alguém que a gente não conhece e tenta decifrar por todo o longa, que deixa pistas, mas nunca revela suas reais intenções. Nesse sentido, Kysyl fica entre Terrance Stamp, do longa de Pasolini, que chega à mansão, manipula amorosa, sexual e psicologicamente cada membro daquela família milionária e desaparece, deixando-os tão no escuro e ansiosos pelo retorno do visitante quanto aqueles que ali habitam, e o personagem de Barry Keoghan, no filme de Fennell, que até compartilha de tal mística, mas a cineasta opta por revelar ao final que tudo aquilo foi feito de caso pensado desde o início, apesar de alguns desvios, desejos e improvisações. De certa forma, Jérémie lembra um pouco mais Oliver (Keoghan) em como se relaciona com o espectador, já que no filme italiano até o nome do protagonista não nos é dado, é apenas um visitante que rapidamente larga nossa mão. O jogo que Guiraudie faz é o de aproximação com quem assiste a Jérémie, um convite a se angustiar, torcer e até mesmo se irritar com as ações do protagonista. Por mais errado que possamos entender que são suas atitudes, somos cúmplices, somos cativados por ele como quase todos os membros daquela cidade. E queremos permanecer assim até o final, manipulando e se deixando manipular, improvisando cada próximo passo.
Ao mesmo tempo que estabelecemos esse elo simbiótico típico do cinema, a quase percepção do espectador como aquele que controla as ações em tela, independente de quais sejam elas, Guiraudie também nos coloca na posição de membros da comunidade, sobretudo em como preserva as informações. Por mais que Jérémie tenha vivido ali quando mais novo, ele está distante há muitos e muitos anos, ninguém realmente sabe quem ele é, o que é verdade sobre o background que conta, o quanto há de um planejamento prévio em suas ações e quanto é improvisação de alguém oportunista. Ele chega como esse fantasma e vemos apenas as suas ações a partir daquele momento. Estamos restritos ao que ele vive, somos cúmplices até em desejar cada novo passo, já que só podemos tentar entender completamente ele e não os demais, sendo esses presentes apenas quando Jérémie está em tela. É justamente por conhecermos apenas o que Jérèmie vê que nos permitimos também sermos manipulados por outros personagens junto a ele, como acontece com o padre (Jacques Develay), desde o início sugerindo saber de tudo, o que cresce a apreensão do protagonista por ser pego, mas que só tem uma confirmação após a simbólica e divertida cena do confessionário.
Ao transpor o cenário de uma mansão cheia de milionários fúteis e repletos de fetiches reprimidos para uma cidade no interior da França, Guiraudie consegue ampliar a percepção e a complexidade em relação a esses personagens, que vivem em uma sociedade relativamente conservadora, mas deixam transparecer uma série de desejos (nem tão) escondidos, sem um medo real de serem pegos, já que quase todos que compõem essas interações com Jérémie são também facilmente manipulados e agentes de manipulação por serem extremamente sozinhos, em um lugar que parece abandonado e distante de toda a civilização “moderna”, a ponto de precisarem dirigir mais de 10 km para comprar pão. É um local que vive no passado e permite a esse que vem da memória chegar e exercer um papel de controle no presente. Só que, apesar de tudo isso, o que torna Misericórdia tão delicioso e inesquecível é como Guiraudie molda essa narrativa hitchcockiana a partir de um personagem que veste várias máscaras, enquanto parece sentir algum remorso por suas atitudes, nos gritos dormindo ou a possibilidade de suicídio (ou seria essa uma outra persona só para nos manipular?), tudo isso dentro de uma dinâmica de humor extremamente saborosa, o riso pelo inesperado e pelo nervoso da improvisação.