|Crítica| 'Meu Bolo Favorito' (2025) - Dir. Maryam Moghaddam e Behtash Sanaeeha
Crítica por Raissa Ferreira.
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'Meu Bolo Favorito' / Imovision
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Escondendo na doçura e simplicidade intenções mais críticas, Behtash Sanaeeha e Maryam Moghaddam retratam a partir da solidão na velhice, um estado de impossibilidades
O filme que Behtash Sanaeeha e Maryam Moghaddam apresentam se torna um tanto surpreendente conforme a pessoa espectadora deixa-se levar por sua doçura. Ainda que as imposições religiosas cruzem o caminho de Mahin (Lily Farhadpour), essas acontecem de forma didática, mas em uma proposta crítica sutil, priorizando que o destaque da narrativa seja a solidão da protagonista. A mulher, viúva e longe dos filhos, pouco tem com quem dividir seus pensamentos, sobrando para quem assiste um papel quase de confidente impotente, que observa essa senhora sentir o isolamento mantendo sempre uma distância bem delimitada. A dupla de cineastas escolhe um caminho econômico, apostando em longos planos que aproveitam os espaços e os caminhos de Mahin em seu lento passo. Essa encenação reforça o vazio ao redor de uma terceira idade solitária, principalmente porque nos primeiros minutos de Meu Bolo Favorito há uma mesa repleta de mulheres conversando e leva algum tempo até que se compreenda que aquilo é a exceção da rotina da protagonista e não a regra. Se dedicar a esses temas, observando com delicadeza e respeito a vida de uma senhora de 70 anos em busca de companhia, permite que as críticas ao regime do Irã e a opressão, principalmente às mulheres, sejam pinceladas sem muito alarde. Tece-se ao redor de uma história doce e melancólica um comentário sobre um impacto geracional, daqueles que viveram uma época sem as imposições atuais - como até é pontuado por uma jovem que Mahin ajuda a se livrar da polícia da moralidade por não estar com o hijab bem colocado -, olham para o passado com as lembranças de uma certa liberdade perdida e se dão ao direito de pequenas rebeldias. Esse caminho se torna mais doloroso e triste, como se depois da primeira mordida agradável do romance que nasce no encontro de Mahin e Faramarz (Esmaeel Mehrabi), viesse o gosto amargo.
Meu Bolo Favorito retrata além da vida solitária dos idosos, a chance de redescoberta corporal e do amor e um país que só encontra felicidade nas memórias ou nas transgressões, sem futuro pela frente. Por isso há o medo de morrer só, tantos estão ausentes em outros países e os momentos de alegria são proibidos ou escondidos, há um recheio crítico nunca escancarado, mas com uma força condizente com sua proposta. Depois que Mahin encontra Faramarz, é como se tudo que viesse antes no longa fosse apenas uma preparação para saborear os instantes que os dois partilham. Os planos se alongam nessa mesma intenção, aproveitando cada pedaço da interação do casal que acaba de se conhecer, mas transbordam com a possibilidade de não estarem mais sozinhos. Constantemente Mahin pede que Faramarz não se demore quando o homem precisa se ausentar por algum motivo, em oposição ao ritmo que a montagem assume, a mulher tem pressa de viver o presente. Assim, observar os dois torna-se um testemunho de regras sendo quebradas, de pequenas atitudes que parecem revolucionárias, em busca da felicidade proibida. Dividem um vinho, se encontram na casa da mulher viúva sem que os vizinhos vejam, despistam uma intrometida que ouve uma voz masculina, dançam, se abraçam e, mais importante, dividem confidências. Behtash Sanaeeha e Maryam Moghaddam transformam as cenas de um encontro romântico em um diálogo sobre o amor, o sexo e a solidão na terceira idade, mas também sobre um país que aprisiona as possibilidades das pessoas. Tudo é construído muito pelos diálogos de Mahin e Faramarz, que indicam as linhas sendo cruzadas, as memórias de um passado diferente, a oposição ao regime e o sentimento partilhado nesta fase da vida.
Não há uma aproximação gradual dos dois, a identificação é quase imediata, como que preenchendo uma urgência há muito sentida. Ainda assim, tudo é carregado na doçura, permitindo que dentro da casa exista segurança e afeto e os problemas sejam mantidos da porta para fora, apenas comentados entre risos, vinho e música. Isso é radicalmente quebrado quando o filme deixa de lado sua postura mais leve e cômica para mergulhar nas dores, um longo respiro de quase 90 minutos seguido por um desfecho dilacerante. O que a construção simples e adorável de Meu Bolo Favorito faz é tornar o alívio da solidão de Mahin quase uma distração do estado das coisas, mesmo quando o cenário é pontuado e explicado, vem com a mesma sutileza que a protagonista leva seus dias e sua tristeza. No entanto, o protesto singelo da dupla de cineastas - que teve seus passaportes confiscados antes da estreia da obra em Berlim - faz questão de lembrar de forma mais pungente que o que era belo, repleto de alegria, amor e música já se foi, rompido abruptamente sem chance de viver o que tinha pela frente. E é a mulher, novamente, que está fadada a sentir as maiores consequências.