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|Crítica| 'Medusa' (2023) - Dir. Anita Rocha da Silveira

|Crítica| 'Medusa' (2023) - Dir. Anita Rocha da Silveira

Crítica por Victor Russo.

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'Medusa' / Vitrine Filmes

 

Título Original: Medusa (Brasil)
Ano: 2023
Diretora: Anita Rocha da Silveira
Elenco : Mari Oliveira, Lara Tremouroux, Bruna Linzmeyer, Thiago Fragoso e Felipe Frazão.
Duração: 127 min.
Nota: 3,5/5,0
 

Da sátira ao terror, “Medusa” encontra na realidade brasileira o palco perfeito para mergulhar no absurdo

Multiplicaram-se as distopias no cinema nacional dos últimos anos. Nada mais esperado, já que a arte quase sempre reflete a sociedade e os problemas do seu tempo. Dessa forma, o cinema brasileiro reagiu à hipocrisia do discurso de um governo que se apoiava na religião e na moral para na verdade propagar ódio contra todos os diferentes e contrários a ele expondo tal visão das mais variadas formas possíveis. Desde os documentários ou obras que traziam realidade para a ficção (“Mato Seco em Chamas” é o exemplo mais recentes), passando por longas mais tradicionais sobre pessoas possíveis (como “Marte Um”, “Deserto Particular” e “Paloma”), até as distopias ou semi-distopias (na maioria das vezes com dificuldade em criar esse mundo novo que reflete o nosso e ficavam presos apenas aos temas, como “Medida Provisória”, “Divino Amor” e “Fogaréu”), que tem em “Medusa” um dos melhores trabalhos.

Não que “Medusa” seja menos explícito em discurso do que “Medida Provisória”, “Fogaréu”, entre outros, muito pelo contrário, talvez seja a distopia brasileira recente mais clara sobre o que quer dizer. Entretanto, assim como “Bacurau” fez dois anos antes (“Medusa” é originalmente de 2021), Anita Rocha da Silveira se utiliza de um jogo cinematográfico com gêneros distintos para descolar a narrativa da realidade e criar um microcosmo novo. Se Bacurau faz isso por meio de um neo western, que ressoa a estética hollywoodiana apenas como uma forma de abrasileirar-la, em uma espécie de versão contemporânea e tecnológica do que fez o Cinema Novo, “Medusa” aposta na artificialidade de um mundo tão bizarro que não pode ser real (mas é, pelo menos em certo sentido).

A cineasta abre mão então da mise en scéne mais realista que tem dominado o cinema brasileiro e mundial nos últimos anos. Utilizando-se de cores fortes, música gritante e planos que desespacializam a escala daquela cidade, o longa se permite criar esse mundo com traços futuristas em uma cidade pequena e extremamente ultrapassada. É justamente essa correlação entre passado e futuro que torna a abordagem temática mais interessante e ambígua. Isso porque, aqui não estamos falando simplesmente sobre um conservadorismo religioso retrógrado, no qual faria sentido uma mise en scéne mais semelhante a de “Entre Mulheres”, que retorna aquele espaço ao passado. Em “Medusa”, o foco é o conservadorismo contemporâneo com pretensão futura, o que já é contraditório por natureza, mas impregna o Brasil atual. Ou seja, não é mais simplesmente a ideia de manter costumes ou de retorno ao passado (reacionarismo). É uma visão para frente, de construção e manipulação, utilizando-se de ferramentas contemporâneas (como a internet) para cegar e moldar uma nova perspectiva de conservadorismo, trazendo os velhos dogmas e preconceitos, mas com artifícios capazes de combater e demonizar qualquer avanço conquistado ou buscado, ao mesmo tempo que encaixa tais ideias ao mundo atual e uma falsa sensação de avanço, uma lógica que é tão contraditória quanto a célebre frase que se tornou comum nos últimos anos: “Conservador nos costumes, liberal na economia” (o que em teoria não faz sentido nem do ponto de vista do conservadorismo e muito menos do liberalismo. Mas o Brasil atual não faz sentido).

A mise en scéne de Anita lida então com esse conservadorismo por uma perspectiva quase de descobrimento. Inicialmente, por mais que vejamos cenas fortes nas tentativas de “conversões” forçadas, tudo tem um tom mais ridículo, sobretudo as cenas de apresentações musicais e de discurso do pastor. É quase aquela abordagem padrão de sátiras hollywoodianas, a de se colocar numa posição elevada para ridicularizar o absurdo do “outro lado”.

Entretanto, esse “absurdo” não é piada, ele assumiu a presidência e o congresso nacional, dominou as redes sociais e ganha novos fiéis a cada dia. Assim, “Medusa” é uma obra que vai se modificando, deixando de lado esse tom mais jocoso capaz de arrancar boas risadas, e tomando um choque de realidade a partir do momento que a protagonista começa a perceber uma vida além daquela seita. Então, a sátira é mergulhada em elementos de terror. Não que o filme deixe de ironizar aquelas personagens ou nos convidar a rir delas. É apenas como se o longa fosse percebendo que apenas rir não resolve o problema ou é capaz de ver as suas consequências. Só que o mais irônico de tudo isso é que quanto mais ele vai se dedicando a essas preocupações “reais”, mais o filme se torna absurdo, fantasmagórico e surrealista. Ao mesmo tempo que isso não espanta ninguém minimamente são no Brasil atual, já que esse culto transformou a realidade do nosso país em um filme de terror absurdista, é também interessante perceber que Anita cria esse chamado de libertação por meio de uma espécie de assombração. Tal assombração, no fim, é apenas como aquelas personagens escondidas atrás de suas máscaras hipócritas enxergam inicialmente essa nova vida, primeiro com repulsa ao não entendê-la, posteriormente com alívio por finalmente terem liberdade de tomar decisões para a sua vida. 

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