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|Crítica| 'Mato Seco em Chamas' (2023) - Dir. Joana Pimenta & Adirley Queirós

|Crítica| 'Mato Seco em Chamas' (2023) - Dir. Joana Pimenta & Adirley Queirós

Crítica por Victor Russo.

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'Mato Seco em Chamas' / Vitrine Filmes

 

Título Original: Mato Seco em Chamas (Brasil)
Ano: 2023
Diretor: Joana Pimenta e Adirley Queirós
Elenco : Joana Darc Furtado, Léa Alves da Silva, Andreia Vieira, Débora Alencar e Gleide Firmino.
Duração: 153 min.
Nota: 4,0/5,0
 

Entre a realidade e a ficção, “Mato Seco em Chamas” retrata pessoas marginalizadas como seres humanos

Desde antes de Nelson Pereira dos Santos, passando por Cinema Novo, Marginal, retomada, até chegar no diverso e regionalizado de hoje em dia, o cinema brasileiro sempre teve um discurso político muito presente. Não teria como ser diferente, ainda mais em um país desigual e cheio de problemas sociais como é o nosso, em que cada cineasta usa sua câmera como voz para fazer um recorte de uma das muitas realidades do imenso Brasil. 

Entretanto, entre uma grande quantidade de obras maravilhosas que o nosso cinema sempre produziu e segue o fazendo, há uma boa parcela de filmes conteudísticos que enfraquecem o seu discurso justamente por ter um interesse maior em “fazer uma crítica social” (ou muitas ao mesmo tempo), do que em estabelecer uma unidade interessante. Assim, longas recentes como “Fogaréu”, “Medida Provisória”, “Regra 34”, “7 Prisioneiros”, “Urubus”, “Carro Rei”, entre tantos outros, tiram o peso do ser humano em tela por tratá-lo apenas como um dispositivo para a mensagem. A cena do Emicida trocando uma arma por um livro no segundo é uma amostra disso.

Em um caminho formal oposto, há uma tendência crescente no cinema nacional da mistura entre ficção e realidade, em que pessoas reais interpretam a si mesmas em um longa encenado, mas que conversa com suas vidas. Affonso Uchôa (“A Vizinhança do Tigre”, “Arábia”) talvez seja o grande nome dessa vertente, mas Adirley Queirós (“Branco Sai, Preto Fica”), que, dessa vez, dirige ao lado de Joana Pimenta (estreante em longas), vem logo atrás.

Claro que tal encenação não é novidade. O primeiro documentário da história do cinema, “Nanook, O Esquimó”, já se aproveitou da encenação de pessoas reais em situações fictícias, assim como essa mistura entre realidade, ficção e uso de não atores é uma prática comum, ganhando mais evidência no Neorrealismo Italiano e no cinema iraniano, mas que já foi comumente usada até mesmo no Brasil ou no cinema independente americano, como nos filmes de Chloe Zhao. 

Porém, nada disso enfraquece tal tendência do cinema nacional, que se usa de tal encenação, cenário e não atores menos a fim de contar uma história e mais a fim de expor uma realidade sem julgamentos. É um dar voz a pessoas marginalizadas, mas sem a estética ficcional e direcionada dos filmes citados no segundo parágrafo. Nesse sentido, essas obras se assemelham bem mais ao cinema de fluxo, na ideia de simplesmente mostrar tal realidade, um retorno, até certo ponto, ao primeiro cinema (de mostração) e uma rejeição à narrativa fechada.

"Mato Seco em Chamas” expõe com muita força essa tendência, não só no uso das pessoas reais encenando sua realidade, mas, principalmente, por meio de planos longos e estáticos de Queirós e Pimenta, quase sempre com uma câmera meramente observadora. Vemos, então, Chitara, Léa e as demais personagens falando coisas banais, como sua vida na cadeia, seus sentimentos e vontades sexuais, indo ao culto (trazendo a contradição tipicamente brasileira do sexo e da religão, mas sem qualquer alarde) ou mesmo sobre o viver naquele lugar. A narrativa simplesmente se move como a vida dessas pessoas, entre o trabalho, os ideais, as vontades. Enquanto isso, a câmera está sempre ali, às vezes escondida atrás dos equipamentos de perfurar petróleo, outras acompanhando uma moto de longe, ou mesmo fixa dentro do ônibus ou de uma festa.

Tais escolhas não fazem de “Mato Seco em Chamas” menos político do que os demais citados nessa crítica. Mas tornam sua mensagem mais poderosa ao integrá-la naturalmente à vida daquelas pessoas e suas rotinas. Se Chitara tem em seu esquema de extração de petróleo e comercialização de gasolina ou no seu envolvimento com a política uma maneira de lutar contra a opressão do conservadorismo liberal que marginaliza pessoas como ela, ao vermos o dia a dia dela, conhecemos uma pessoa além da sua luta. Mais do que isso, essa luta ganha ainda mais peso quando percebemos o quão natural e necessário é para essas pessoas tentar quebrar o sistema de alguma forma, ainda que só consigam destruir um pedacinho da pontinha do iceberg. 

Tal naturalidade está presente em cada momento dessa narrativa não linear. O que faz total sentido que seja assim já que não importa quando e onde começou ou terminou, trata-se de uma luta cíclica, construída a cada dia. Assim, essa desromantização proposta pela direção faz com que vejamos Léa e Chitara portando armas, beijando uma mulher dentro do ônibus ao som de um funk, negociando com motoqueiros ou fazendo um ato em cima de um trio elétrico com a mesma atitude, como se tudo aquilo simplesmente fosse apenas parte de um cotidiano. É essa visão observadora, sem julgamentos, que humaniza essas personagens. Elas cometem crimes, são presas e muitas pessoas só darão atenção para isso, criminalizando-as. O olhar de Queirós e Pimenta é muito mais interessante, as escuta, observa, retrata e dá à prisão e cada ato um novo significado, o de que com ou sem as barras, essas personagens lutam, vivem, mas estão presas por esse mundo gigante que as oprimem.

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