Português (Brasil)

|Crítica| 'Marinheiro das Montanhas' (2023) - Dir. Karim Aïnouz

|Crítica| 'Marinheiro das Montanhas' (2023) - Dir. Karim Aïnouz

Crítica por Raissa Ferreira.

Compartilhe este conteúdo:

 

'Marinheiro das Montanhas' / Gullane

 

Título Original: Marinheiro das Montanhas (Brasil)
Ano: 2023
Diretor: Karim Aïnouz
Elenco : -
Duração: 95 min.
Nota: 4,0/5,0

 

Karim Aïnouz faz um resgate emocional e histórico extremamente íntimo em que permite ao espectador dividir sua jornada e seus pensamentos

Pensar na história do Brasil é sempre um amontoado de origens que se embaralham, formando pessoas com conexões nos mais diversos lugares. Quando Karim diz, com certo espanto, que ao chegar no porto da Argélia seu sobrenome foi compreendido de primeira, começa a se traçar o que será uma viagem que quase sempre é sobre um pertencimento que vai e vem. Se em Fortaleza seu sobrenome era único e diferente, provavelmente pouco compreendido, nesse lugar em que nunca esteve, há identificação imediata por essas pequenas palavras que compõem seu nome. É nessa ponte imaginária entre Brasil e Argélia, na qual pouco vemos o primeiro mas muito o sentimos, que o longa vai trabalhar um resgate desse homem que nunca aparece na frente das câmeras, mas se faz extremamente presente ao dividir seus pensamentos mais íntimos, em forma de conversas com a mãe, por meio da narração. Karim aproveita a tela como registro de imagem e memória, deixando as pessoas fluírem livremente com os espaços para sua câmera, ao mesmo tempo em que constrói por trechos e fotografias de arquivo, lembranças e delírios que se unem em uma narrativa bastante melancólica. É quase uma gentileza do diretor que ele nos permita adentrar esse lugar tão íntimo e, também, permita que vivenciemos essa experiência de estranhamento em um lugar em que, de certa forma, somos tão estrangeiros quanto ele mesmo.

No começo, é como se Karim não soubesse ao certo o que faria com seus registros dessa viagem, montando praticamente um diário, como se escrevesse em cartas para sua mãe tudo que está vivendo nessa parte de suas histórias que nunca conheceram. Aos poucos, o filme se torna mais intencional, talvez na mesma medida em que o diretor entenda o que está fazendo naquele país, naquelas cidades. A conexão entre ele e a mãe, presente a cada segundo, se mostra uma partilha emocional que não se desfez mesmo após a sua morte. Do sobrenome que apenas os dois compartilhavam em Fortaleza a toda uma vida que poderiam ter vivido de forma diferente na Argélia, Karim e Iracema dividem um laço invisível que o fez tomar a decisão de fazer essa viagem apenas com a presença abstrata da mãe, recusando a proposta de companhia do pai sempre ausente, com quem apenas divide uma origem biológica. Esse trajeto, portanto, não se trata de conhecer melhor o pai, mas sim de algo muito próprio de Karim, que por acaso se deve a esse homem que cruzou o caminho de Iracema na América do Norte, tantas décadas no passado. O acaso, aliás, é outro grande fator para “Marinheiro das Montanhas", que encontra nas reações legítimas das pessoas que passam uma relação de estranhamento desse país desconhecido com esse estrangeiro de sobrenome familiar, além dos acasos que montam sua própria jornada. 

Há quase um constrangimento ao assistir algumas cenas em que pessoas parecem nos encarar, ultrapassando os limites da tela, enquanto olham desconfiadas para Karim. É sempre a ele que esse meio responde, física ou verbalmente, mas a imersão que as imagens propõem, com uma câmera na altura dos olhos que nos permite partilhar o ponto de vista do diretor, nos fazem sentir que somos nós os encarados, os diferentes, que não pertencem a aquele lugar. A lembrança constante de que Karim fala com a mãe, e não com quem o assiste, vem às vezes quase como um sentimento de que ouvimos algo muito particular. Os “você” sempre ditos com tanto carinho, nos lembram que somos apenas meros observadores dessa jornada de um homem só, bem como, as imagens de Iracema, que remontam pouco a pouco sua história pela narração do filho, tornam essa oportunidade de presenciar uma conversa tão íntima, algo ainda mais bonito. Karim consegue montar algo extremamente sincero, quase capaz de omitir sua consciência de que estaríamos ali o ouvindo a cada cena. E é essa narração que por vezes até hipnotiza, pelas imagens que passam criando seu próprio ritmo, nem sempre acompanhando diretamente o que é referido, e as palavras ditas que montam sua própria história. Assim, o diretor aproveita bastante o uso do texto, do que ele fala, do que dizem a ele e do que é escrito em tela, para criar quase que uma outra linha narrativa que se entrelaça à visual ocasionalmente sem buscar obrigatoriamente um sentido que as una. Enquanto observamos pedaços da Argélia, seja da cidade grande ou do vilarejo remoto de origem dos Aïnouz, se Karim conta algo muito imersivo que ultrapassa o que pode ser visto, é quase como se essas imagens se dissolvessem, tornando seus relatos muito mais importantes para nossa atenção e criando novas relações do filme com a imaginação do espectador. 

Os olhares que desconfiam do estrangeiro se transformam aos poucos em um acolhimento de uma família distante e desconhecida, mas o desconforto de Karim pode sempre ser sentido - muito pela empatia que vem fácil quando ele nos coloca nessa posição junto a seu olhar - e esse pertencimento biológico e de nome é também um não pertencimento de alma. Iracema e o Brasil são as origens de Karim, e isso fica claro em seu longa desde o começo, assim como a Argélia e seu pai sempre parecem ser apenas ideias distantes, delírios de um laço imaginário em oposição ao que é real mas invisível, e que ele já conhece mas talvez precisasse transformar em filme para compreender melhor. “Marinheiro das Montanhas” é bonito por ser assim, tão particular desse homem, mas ao mesmo tempo conseguir partilhar tão abertamente conosco, não como quem somente conta uma história, mas realmente dividindo essa experiência e suas emoções. 

Compartilhe este conteúdo: