|Crítica| 'Love Lies Bleeding - O Amor Sangra' (2024) - Dir. Rose Glass
Crítica por Victor Russo.
'Love Lies Bleeding - O Amor Sangra' / Synapse Distribution
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Rose Glass não olha para os problemas do mundo a fim de resolvê-los ou criar alguma conscientização, mas de representá-los por meio dos corpos
Da leva de filmes de terror da A24 que se estende até hoje com uma pretensão majoritariamente dramática e temática, Rose Glass tem em Saint Maud um dos poucos representantes que vai além do psicológico e simbólico, adentrando em um horror mais direto e até visual. Love Lies Bleeding, novo longa da cineasta distribuído pelo estúdio, pode não ser um terror propriamente dito, mas conserva elementos do gênero (e também da fantasia), assim como essa dominação feminina da narrativa e uso constante das luzes fortes vermelhas. Entretanto, muito mais do que no seu longa anterior, os constantes simbolismos presentes por todo o filme buscam uma relação mais direta com o corpo do espectador. Ao situar tudo em 1989, momento histórico mundial de incerteza, sobretudo por conta da queda do Muro de Berlim e enfraquecimento da União Soviética, Glass se aproveita de uma ambientação e personagens pouco claros para criar um mar de emoções carnais.
Então, se escutamos os comentários sobre os malefícios do cigarro ao fundo ou vemos um casal de lésbicas (Kristen Stewart e Katy O’Brian) em primeiro plano, isso pouco tem a ver com uma pretensão educativa do tipo de tema que sente a necessidade de ensinar o espectador. São apenas elementos da trama que constituem essa narrativa de incerteza, assim como nunca há um comentário negativo ao uso de esteroides por parte de Jackie (O’Brian). Mais do que simplesmente dizer “essa época era assim”, Glass mira na ebulição que tal cenário pode provocar. A filha que não fala com o pai mafioso (Ed Harris), enquanto a namorada sem saber começa a trabalhar para ele, ao mesmo tempo que a irmã (Jena Malone) é violentada constantemente pelo marido (Dave Franco), que também trabalha para o chefão do crime local, são apenas os pontos que movem a trama, que fazem as personagens tomarem decisões por razão ou, principalmente, por impulso. Não há desdobramento desses personagens, pouco sabemos deles ou da influência para aquela cidade. Mas sentimos na pele cada pedaço dos seus corpos e gotas de suor escorrendo.
Ao abrir com uma decupagem focalizando em partes dos corpos de pessoas fazendo academia, fica claro esse interesse de Glass pelo carnal, por aquele cinema que toca não o cérebro do espectador, mas a pele. Então, por mais que a trama ande e o desespero e objetivo das personagens se altere, no fundo, para a cineasta, não há nada de muito diferente entre o sexo das protagonistas que transpira tesão, as cenas de Jackie malhando após injetar anabolizante, um rosto esfacelado ou um tiro de surpresa que perfura a cabeça de uma personagem secundária. Tudo vai direto nas nossas emoções mais primitivas, como um jogo em que a história é um mero dispositivo para um cinema cada vez mais distante, uma mistura da sensualidade dos anos 70 e 80 misturado ao erotismo violento dos thrillers dos anos 90 e o desapego de profundidade racional do cinema dos ano 2000.
Porém, se o filme tem cara de filme de locadora, em sua proposta direta e roteiro pouco preocupado em desenvolvimentos emocionais ou complexidade de personagens, Glass o faz sob uma ótica muito mais consciente, não fazendo de Love Lies Bleeding um filme metódico, mas tendo uma noção da seleção meticulosa de planos e cores para criar esses sentimentos extremos. Não é só o vermelho que grita em um mix de tesão e violência, mas sobretudo a escolha pelo close e pelo plano detalhe dos corpos que criam esse desespero incerto pelo que vem a seguir. A falta de conhecimento desses personagens fortalecem esse recebimento sensorial por parte do espectador, a partir do momento que todos ali soam imprevisíveis, já que mal os conhecemos. Sentimos apenas esse pavio prestes a ser queimado e explodir, como a fissura de Lou (Stewart) por aquele cigarro que ela tenta não fumar, a ponto de mal percebermos como nos deixamos levar por toda essa manipulação de Glass, que insere planos sugestivos do passado, muda de um lugar para o outro, cria coincidências (como os agentes do FBI aparecendo na porta da casa de uma personagem que tenta esconder um corpo). Pouco importa que estamos sendo moldados a sentir, nos entregamos a ponto de nem sentirmos a fantasia se fazendo presente do nada, como aquele corpo que cresce e alcança as nuvens na final libertação das personagens. O simbolismo não fica apenas no comentário, Glass faz ele ganhar as telas, causar sentimentos conflitantes, do horror do inesperado até o cômico da situação, mas que no fundo não cessam nosso vício por aquele ambiente intoxicante, nos fazendo torcer para as personagens finalmente tirarem do caminho tudo que as impeça, para que possamos nos ver livres ao lado delas.