Português (Brasil)

|Crítica| 'Lobo e Cão' (2023) - Dir. Cláudia Varejão

|Crítica| 'Lobo e Cão' (2023) - Dir. Cláudia Varejão

Crítica por Raíssa Ferreira.

Compartilhe este conteúdo:

 

'Lobo e Cão' / Filmicca

 

Título Original: Lobo e Cão (Portugal)
Ano: 2023
Diretora: Cláudia Varejão
Elenco : Ana Cabral, Ruben Pimenta, Criatiana Branquinho, João Tavares e Marlene Cordeiro.
Duração: 111 min.
Nota: 3,5/5,0

 

O coming of age de Cláudia Varejão é uma peça amorosa que incita a juventude nascida em pequenas gaiolas a se libertar e viver novos horizontes

Uma ilha cercada pela imensidão do Atlântico e uma pequena parte do cérebro que processa as emoções, são as relações que Varejão escolhe para introduzir seu longa e que são, basicamente, a essência dessa fábula. A Ilha de São Miguel, em Portugal, poderia ser comparada a uma pequena cidade aqui mesmo, no Brasil, com seus costumes próprios e uma forte relação religiosa que rege tudo, podemos não compreender cada tradição local como o uso das máscaras de animais e a romaria dos homens, mas entendemos que aquele é um lugar pequeno que de certa forma oprime os que lá vivem. Além das pessoas serem sempre as mesmas, e todas se conhecerem, os planos tendem a não dar muito espaço para os personagens em cena. Quando Ana (Ana Cabral) é muitas vezes mostrada sozinha em relação ao mundo ao seu redor, há pouco respiro em volta, mas muitas vezes é o céu ou o mar que aparecem, como pequenas frestas de um horizonte que ela ainda não explorou, mas a aguarda. Aos poucos, a ideia de que existe vida além da ilha é inserida, por histórias daqueles que já se foram para outros países, mas “Lobo e Cão” não busca vilanizar aquela cidadezinha, e sim mostrar o senso de comunidade que há nos que se encontram como diferentes e como há um mundo de possibilidades para se viver, além das grades em que alguns nascem e vivem.

A relação entre Ana e Luís (Ruben Pimenta) é o primeiro ponto que começa a mostrar essa união. Luís é bem mais claro sobre como representa sua identidade para o mundo, enquanto Ana é mais contida. Para ele, fica óbvio desde os primeiros momentos que aquele é um lugar que o oprime e onde ele tem que seguir convenções que limitam seu modo de ser e de se expressar. Na vida de Ana, essas limitações são mais sutis, ainda que a garota reclame das diferenças dadas a ela como mulher em relação ao irmão, são seus sentimentos mais internalizados que a farão buscar liberdade, enquanto Luís já externaliza muito do que sente. Os dois fazem parte de uma pequena comunidade LGBTQIA+ da ilha, e nos momentos em que estão juntos com essas pessoas é que existem alguns dos maiores respiros dos personagens, em que finalmente podem agir livremente, longe da clausura dos julgamentos e retrocessos de seus familiares e vizinhos. É curioso como em muitas cenas a estética e o figurino podem remeter a algo do passado, e como não há a presença do mundo digital interferindo nessa juventude, são quase sempre as questões sobre sexualidade e gênero que nos colocam nos tempos atuais, como se o filme tentasse colocar a ilha parada no tempo, com costumes antigos e pensamentos ultrapassados, enquanto alguns poucos vivem em outro eixo - o ponto diferente entre os adultos mais tradicionais é a mãe de Luís.

Ainda que pensemos essa relação que restringe alguns como algo pesado e difícil, “Lobo e Cão” carrega uma gentileza e amor em tudo que quer dizer. Mesmo nos momentos mais duros que Luís passa, a narrativa busca o acolher sempre, seja com a mãe que o apoia ou sua pequena comunidade de amigos e amigas. Da mesma forma, enquanto Ana se descobre, as cenas exaltam sua identidade e seus sentimentos de forma calorosa. É um filme muito doce nos detalhes, que explora uma sensualidade latente da garota, sempre mais contida, mas mostrando que há algo forte dentro dela, como um oceano prestes a se soltar. Essa doçura e timidez nas descobertas lembra muito o cinema de Céline Sciamma, mas há um maior otimismo em Varejão que faz a relação entre Ana e Cloé (Cristiana Branquinho) ser algo gostoso de ser observado, nos faz torcer pelo primeiro beijo, admirar cada contato entre elas e saber que ali há algo bom, feliz e recíproco, o que nem sempre ocorre dessa forma em filmes da temática queer. Mas é esse tom que a diretora propõe que permeia toda a narrativa e transforma cada arco-íris refletido num elemento quase mágico, que nos joga internamente nesse lugar da juventude, onde tudo parece ter mais possibilidade e cor.

Fica claro que a ilha é um lugar pequeno demais para Ana e Luís, como animais presos em gaiolas ou baleias que precisam encontrar seus próprios grupos para sobreviverem a esse mundo. Não há pesar também no deixar a casa, e a família, para trás, mas sim uma grande esperança de que esse é apenas o início dessa jornada cheia de horizontes a explorar.  

Compartilhe este conteúdo: