|Crítica| 'Here' (2024) - Dir. Bas Devos
Crítica por Raissa Ferreira.
'Here' / Zeta Filmes
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Bas Devos propõe uma pausa para observar calmamente a mutação do presente, a partir de dois personagens em movimentos opostos
As imagens dos prédios em construção remetem rapidamente ao estado atual das grandes cidades, soterradas por novos edifícios que engolem as casas e todo resquício de natureza ao seu redor. Qualquer imagem de concreto ao lado de um guindaste parece facilmente com São Paulo, mas o cenário de Bruxelas, que abriga Here, ainda respira em muito mais cantos do que as grandes cidades brasileiras parecem conseguir. Mesmo assim, é evidente que Bas Devos busca essa mutação do presente, das construções ganhando espaço, do urbano restringindo a natureza, dos transportes em movimento, das pessoas isoladas, os aplicativos de entrega e até em menor grau, o uso dos celulares. Em um mundo contemporâneo, Devos olha para as mudanças, mas pede calma, dá tempo para suas cenas respirarem, para seus personagens pensarem, se compreenderem nos espaços, para que tudo seja observado, sem dar maior valor para o verde ou o cinza, mas os equilibrando em igual paciência na contemplação. Stefan (Stefan Gota), imigrante romeno, precisa parar e dizer em voz alta que aquele apartamento é sua casa, mais do que isso, olha a cidade pela janela enquanto faz a mesma afirmação, ele busca pertencimento, mas não consegue o sentir. Sua introdução desenvolve que a trama se estabelecerá a partir do retorno desse homem ao lar, do qual ele não sabe se sairá mais, ao mesmo tempo em que apresenta outra imigrante, a belga-chinesa Shuxiu (Liyo Gong), a qual a solidão parece com a de Stefan, mas com raízes muito mais fortes fincadas nesse lugar.
Para Devos, não existe nada superior ou inferior, tudo carrega o mesmo valor em seu filme, e assim como Stefan trabalha com o concreto, Shuxiu estuda o que vem da terra, da natureza. Enquanto o homem está em deslocamento, sem saber exatamente onde vai se fixar, a mulher finca raízes e prende sua atenção. Ao mesmo tempo que ele precisa aproveitar tudo que está parado e estragando na geladeira, espalhando entre seus conhecidos o alimento que, curiosamente também vem da terra - cenouras, aipo, alho e afins -, ela possui um pedaço de suas origens no restaurante da tia, em que o alimento vai e vem pelos entregadores, se movimenta rápido, porém, tudo isso é observado rejeitando em sua forma a pressa do mundo atual, dando espaço para cada coisa a seu tempo. O aqui em Here é complexo, pois essa cidade em que os personagens caminham praticamente em cursos opostos, serve tanto de passagem quanto de casa a eles, que se comunicam pelo francês, mas usam seus próprios idiomas para falarem com suas famílias, reforçando essa sociedade de hoje, em que origens se misturam e a língua é também um pedaço de casa, uma forma de pertencer. O aqui de Stefan é quase uma tentativa de se convencer, uma passagem, mas o de Shuxiu é uma terra firme para se construir algo. Dessa forma, importa mais o agora, e mesmo que o filme já diga logo de cara que as férias pontuam uma transição de lugar, essa mudança só chegará em seu desfecho como um aceno, não se desenvolverá aqui, é o captar desse pequeno caminho, do contato entre os dois, e da movimentação de Stefan parando por alguns momentos nesse encontro, que ganha o foco.
Assim, Stefan quase sempre caminha perto de transportes, ônibus passam ao seu lado, trens ou bondes, e Shuxiu é quase sempre vista observando suas plantas e musgos. No microscópio da brióloga, as folhas revelam um outro mundo, um mapa de toda uma nova cidade em seus contornos, campo em que ela mergulha completamente, já o romeno, carrega sementes em seus bolsos, do tipo que viajam pelo ar e só se estabelecem quando plantadas para finalmente criarem suas raízes. O possível romance que Here poderia criar entre os dois não tem como vingar por isso, é como se o filme parasse o tempo para que o espectador junto aos personagens pudessem simplesmente observar sem pressa o mundo, do que cresce na terra até o que se constrói perto do céu. Mas as relações humanas ainda dependem de um aqui e agora e ambos se movimentam de formas opostas, ainda que durante essa breve contemplação, Stefan tenha parado seu tempo para conhecer, ver e escutar o mundo fantástico da natureza que Shuxiu tanto aprecia.
Here é como um sonho, em que é preciso dizer em voz alta o que sua mente deve compreender, ao mesmo tempo em que muitos diálogos somem no som dos ambientes, em que o humano entra em comunhão com os espaços mágicos da natureza, ainda que não se sinta pertencente à cidade ao seu redor. É preciso parar e respirar, fugir da lógica atual, da ansiedade e das angústias, para enxergar, assistir e ouvir.