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|Crítica| 'Grande Sertão' (2024) - Dir. Guel Arraes

|Crítica| 'Grande Sertão' (2024) - Dir. Guel Arraes

Crítica por Raissa Ferreira.

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'Grande Sertão' / Paris Filmes

 

Título Original: Grande Sertão (Brasil)
Ano: 2024
Diretor: Guel Arraes
Elenco : Caio Blat, Eduardo Sterblitch, Luisa Arraes, Luis Miranda, Rodrigo Lombardi e Lucas Oranmian.
Duração: 114 min.
Nota: 4,0/5,0

 

Com adaptação ambiciosa, Guel Arraes não se separa da literatura, mas a abraça como ritmo de seus personagens apaixonados, em uma distopia suja e pulsante

Adaptar livros para o cinema é sempre uma tarefa difícil, recebida por muitos com descrença, principalmente aqueles que esperam alguma fidelidade que ligue as duas obras. Curiosamente, Shakespeare já foi usado tanto de inspiração para roteiristas e diretores que seu trabalho é hoje parte de qualquer história, sem indicações precisarem ser feitas, ou se pensarmos por outro lado em Cyrano de Bergerac, sua lógica já foi aplicada inúmeras vezes, sem necessariamente se tratar de uma adaptação direta do livro. Fato é que independente do autor, tudo já foi feito e vivemos circulando ideias, seja para recriar Vertigo pela milésima vez ou para dar um toque de Édipo em alguma narrativa. Grande Sertão: Veredas é peça fundamental da literatura brasileira, daí o desafio de Guel Arraes já nasce grande, e para dar luz a seu filme, o diretor e roteirista, junto com o gigante Jorge Furtado, coloca a obra de Guimarães Rosa em outro mundo, outra realidade, mas nunca se separa da literatura, pelo contrário. Grande Sertão se apropria do texto, da forma lírica como a história se dá e os personagens se comunicam, e fazendo isso, todos os atores se unem em um mesmo ritmo, na cadência poética do texto declamado, muitas vezes gritado, que pulsa como a velocidade do longa pede. O sertão agora é favela, verticalizada, um complexo cercado por muros em que construções se empilham e a fantasia não se distancia da realidade, mas também a utiliza para montar seu universo. As armas, o tráfico, policiais, milícias, interesses políticos, o crime e as balas perdidas, tudo remete a um morro carioca, mas sem a necessidade de se posicionar ou se rotular. Arraes aproveita o que faz parte do nosso mundo para arquitetar um imaginário dessaturado e distópico, dando dimensão ao sertão de forma que nem faça sentido pensar o que há além dos muros. 

O narrador sempre presente, Riobaldo (Caio Blat), conta sua vivência direto para a câmera, como um depoimento documental. Mas sua fala vem direto do peito, e com o lirismo que permeia o roteiro, o Riobaldo do futuro, cheio de tatuagens, cabeludo e barbudo, fala com fascínio sobre Diadorim (Luisa Arraes) e tudo que viveram, enquanto as imagens se entrelaçam entre o que foi e seu rosto apaixonadamente e energicamente nos relatando. É seu ponto de vista que prevalece, e, portanto, pouco nos afastamos de como ele enxerga o sertão e seus integrantes. Assim, quando a pequena Diadorim aparece, seus olhos brilham para nós como reluziam para o pequeno menino que traçou seu destino no momento em que a conheceu. Riobaldo adulto é um professor sério, de postura firme, mais limpo que tudo que o cerca, mas é botar os olhos em Diadorim que sua persona se transforma. Essa personagem ambígua, que é homem e mulher, bicho e gente, amor e ódio, vida e morte, é, acima de tudo, a ausência do medo enquanto Riobaldo vem com a inocência da esperança na paz. Para o narrador, esse amigo de infância é um combustível que move sua vida, e Grande Sertão dita seus laços com paixão, há sempre uma tensão sexual muito forte entre os dois, que une atração e repulsa, visto que o professor se recusa a aceitar o desejo enquanto acredita que o amigo carrega o mesmo gênero que ele - o longa nega debates mais profundos sobre sexualidade, vai no caminho mais genérico nesses momentos. Nessa distopia em que o texto poético é modernizado e os celulares e bailes funks existem, ainda assim, ser mulher não é bem aceito na guerra, tanto de um lado quanto do outro, são corpos masculinos muito sujos ou bem fardados que compõe os exércitos e é quase como uma dança que o longa faz Riobaldo e Diadorim estarem quase sempre se tocando, dos lábios aos braços, mas rapidamente se afastando.

A energia de Grande Sertão é o que mais marca a obra, do ritmo do texto à montagem, é quase como se não houvessem respiros. O filme suga em uma cadeia de acontecimentos, os personagens se puxam pelas ações e consequentemente, o espectador é também captado para dentro daquilo tudo. A atuação bastante corporal, se aproximando do teatro, tira o melhor de cada peça, Eduardo Sterblitch encarna um homem meio demônio que se adapta perfeitamente à fantasia desse vilão pouco humano, da mesma forma que Rodrigo Lombardi dá toda presença e poder que Joca Ramiro precisa não apenas para personificar essa figura de liderança, mas também a admiração e o respeito que tem tanto de Diadorim quanto dos outros que o seguem. O elenco se une em um mesmo tom, nesse passo acelerado, pulsante, que evoca o fascínio de Riobaldo e o transporta a quem assiste, cada detalhe do sertão parece tão fantástico quanto real, próximo desse nosso mundo em que crianças também morrem com balas perdidas perto de escolas. E, nessa lógica, somos levados pelo narrador nas dualidades dos personagens, do líder policial e político Zé Bebelo (Luis Miranda) até cada integrante do bando tido como criminoso, ninguém é puramente bom ou mau, o que se preza é a lealdade e a palavra dos homens. 

Grande Sertão é um filme corajoso, pela forma como apresenta seu texto e seu mundo, por como desbrava uma obra complexa e a transforma em algo próprio. Abraça a tragédia, tão comum ao cinema e à literatura, mas faz os corpos dançarem como num palco, se movendo dinamicamente, apaixonados uns pelos outros, pelo poder ou pela ideia de viver e morrer, essa última sendo sempre o destino claro de cada um. Para Diadorim, que nunca teve medo da morte, essa se dá como escolha certa, para Riobaldo, sobram na pele as marcas de uma história que aparecem pouco a pouco para nós, contando aqueles que se foram, e dentro do peito o amor nunca concretizado, barrado por si mesmo, por um preconceito tão antigo que parece nem caber no tempo imaginário do filme. Fato é que Guel Arraes dá conta da grandiosidade de tudo sem dar uma chance para que quem assiste se sinta fora do sertão, ele invade e toma conta. 

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