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|Crítica| 'Eu, Capitão' (2024) - Dir. Matteo Garrone

|Crítica| 'Eu, Capitão' (2024) - Dir. Matteo Garrone

Crítica por Victor Russo.

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'Eu, Capitão' / Pandora Filmes

 

Título Original: Io Capitano (Itália)
Ano: 2024
Diretor: Matteo Garrone
Elenco : Seydou Sarr, Moustapha Fall, Issaka Sawadogo, Hichem Yacoubi e Khady Sy.
Duração: 121 min.
Nota: 2,0/5,0
 

Enquanto Seydou sofre e é explorado no caminho, Matteo Garrone, de seu lugar seguro e afastado, faz o mesmo com a sua câmera, sempre pronta para abusar daquelas imagens torturantes

"De boas intenções o inferno está cheio”. Se tal máxima já conversava com o cinema desde os primórdios dessa arte, a partir do momento em que o capitalismo reconheceu o avanço de causas sociais como um público numericamente representativo, a tendência por filmes focados em seus temas com o objetivo educativo de ensinar e denunciar tal práticas se tornou ainda mais comum. Claro que o cinema como um modelo comportamental a ser seguido está longe de ser uma novidade, Hollywood sempre vendeu o sonho americano e a individualidade e fez da indústria cultural, que tem o cinema como sua maior e mais popular arma, um meio de vender o seu modo de vida para todo o mundo como o que deve ser seguido. Porém, com um cinema cada vez mais focado em temas relevantes, representatividade e exibição da pobreza e situações de vulnerabilidade por todo o mundo, aumentou-se também a quantidade de cineastas sentindo um dever de anunciar tais questões para o mundo, sobretudo estadunidenses e europeus (principalmente da Europa Ocidental). Nesse processo, alguns mais astutos, como Martin Scorsese em “Assassinos da Lua das Flores”, reconhecem o seu lugar ao narrar tais histórias, percebendo até que ele e sua classe são historicamente parte do problema. Já Garrone coloca-se na segunda e mais abrangente classe de cineastas, a que detém o seu lugar seguro e denuncia o sofrimento de pessoas vulneráveis apenas com um sentimento de que está fazendo a sua parte, recusando-se a perceber como o uso da imagem cinematográfica carrega uma mensagem que pode ser bastante oposta à “boa intenção” pretendida.

Ao acompanhar Seydou (Seydou Sarr), partindo do Senegal com seu primo Moussa (Moustapha Fall) e mudando sua rota (inicialmente iam para a França, mas foram convencidos que o trajeto muito mais longo até a Itália, passando pela Líbia, seria mais fácil) até a Europa, como essa terra prometida, mas que não passa de uma ilusão para refugiados como eles, vemos uma série de pessoas explorarem e se usarem desses jovens inocentes a fim de tirar o dinheiro deles. Garrone, porém, não percebe que ele está fazendo o mesmo, a partir do momento que sua abordagem nada mais é do que um retrato desses jovens sendo torturados durante quase duas horas. De seu lugar seguro, o italiano que pouca familiaridade parece ter com o Senegal e com os demais países africanos que o cercam, resume a sua denúncia a closes em Seydou desesperado, torturado (aqui literalmente) e agredido. É como se o cineasta soubesse do seu lugar distanciado e se usasse dessa narrativa como uma forma de se sentir bem, no melhor estilo “fiz a minha parte e agora o mundo vai ser melhor”.

Porém, quem sofre no processo continua sendo aquelas pessoas em situações de vulnerabilidade, iludidas por um sonho que provavelmente arruinará suas vidas (pelo menos Garrone não mostra a Europa e deixa o final aberto sobre o futuro dos garotos). Pior ainda é perceber que, diferente de Scorsese, Garrone sequer percebe a culpa europeia em todo esse processo e na formação territorial das nações africanas. Os colonizados (e que em grande medida continuam assim até hoje) não passa de um povo selvagem, de bandidos, ladrões e mentirosos, com algumas poucas almas boas à mercê desses criminosos (além da dupla principal, Martin (Issaka Sawadogo) também demonstra essa preocupação “mais humana” ao se relacionar com Seydou. Ou seja, o cineasta italiano olha para a consequência, o funcionamento dessa máquina de mercenários que explora jovens sonhadores, como se fosse a causa do problema. Assim, toda a denúncia se volta para esses criminosos, enquanto pouco se importa com a verdadeira responsabilidade desse problema, as tantas décadas de exploração e divisão do continente africano por parte dos europeus, o que segue ocorrendo até hoje com países como a França mandando e desmandando em chefes de estado a fim de explorar as riquezas naturais de países como Níger, Burkina Faso, Mali etc. 

Ao nem fazer uma citação à responsabilidade europeia, Garrone reforça o seu lugar seguro e ainda lucra com isso com os prêmios e indicações que vai recebendo pelo filme. Pode parecer injusto responsabilizá-lo por isso, mas é difícil não ver na visão do cineasta para a situação aquela fórmula tradicional que as premiações, formadas majoritariamente por brancos e ricos distantes desse local retratado, que muitos festivais e o Oscar adoram para sentir aquela sensação de dever cumprido, como se ao indicarem filmes assim a consciência deles pudesse ficar limpa. Mais uma vez, retornamos à questão inicial: o tema. Assim, o uso cinematográfico dado a ele perde seu lugar na discussão, a representação brutal da violência ganha ecos de “coitados desses garotos” no ocidente, por pessoas que enxergam tal situação com o mesmo distanciamento e necessidade de dormir tranquilo à noite. A intenção continua sendo boa, a situação complexa e histórica é simplificada, a culpa some e Garrone ainda acha espaço para dar risada em meio a tudo aquilo com passagens de humor que amenizam o sofrimento, assim como dois momentos deslocados de fantasia que soam mais como o diretor querendo manter a sua assinatura e usando aquele garoto sonhador para isso do que inclusões realmente naturais à mise en scène proposta em todo o restante. No fim, é mais um filme sobre pessoas em situações de vulnerabilidade destinado apenas a quem está distante daquilo e não a quem realmente vive isso.


 

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