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|Crítica| 'Criaturas do Senhor' (2023) - Dir. Anna Rose Holmer & Saela Davis

|Crítica| 'Criaturas do Senhor' (2023) - Dir. Anna Rose Holmer & Saela Davis

Crítica por Victor Russo.

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'Criaturas do Senhor' / Califórnia Filmes

 

Título Original: God's Creatures (Irlanda)
Ano: 2023
Diretoras: Anna Rose Holmer e Saela Davis
Elenco :Paul Mescal, Emily Watson, Aisling Fanciosi, Declan Conlon e Toni O'Rourke.
Duração: 101 min.
Nota: 2,0/5,0
 

“Criaturas do Senhor” segue a fórmula A24 à risca e transforma tensão em afastamento e desconexão entre espectador e personagens

A A24 é um dos maiores e mais inesperados fenômenos recentes no cinema. Por mais que a inicialmente distribuidora, e agora produtora e distribuidora, não atinja o nível de popularidade das obras dos grandes estúdios, ela se consolidou o suficiente a ponto de levar o cinema independente a uma proporção capaz de furar apenas a bolha cinéfila, tornando-se extremamente sustentável economicamente e criando uma base de fãs no processo. E, por mais que pensar em uma fanbase de estúdio seja bizarro e o grande mérito da A24 esteja justamente na liberdade dada para os seus cineastas criarem obras distintas, há algum sentido nessa visão unificada da empresa, o que, aos poucos, vai gerando uma fórmula muitas vezes problemática.

Isso porque, por mais que a maioria dessas obras sejam bastante diferentes e perpassem diversos gêneros (a A24 tem um catálogo que vai muito além do terror, incluindo dois vencedores do Oscar: “Moonlight” e “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo”), a própria produtora e alguns dos diretores a terem seus trabalhos distribuídos por ela, como Ari Aster (dos ótimos “Hereditário” e “Midsommar”), fortaleceram um discurso elitista, por mais que tal visão não tenha partido deles. “Pós-terror”, “Terror elevado”, “terror dramático/psicológico”, independente do termo (alguns mais infames, outros mais naturais), a verdade é que a A24 abraçou essa percepção contra o terror mais comercial, vendo no “drama” a verdadeira arte e reforçando uma ideia de que o filme de gênero (principalmente o terror, mas não só ele) é inferior ao filme “sobre a psicologia dos personagens”, criando uma divisão que nem sequer deveria existir. 

Então, se esse tipo de terror não é uma novidade e diversas obras fizeram trabalhos maravilhosos nesse sentido, como “O Iluminado”, a trilogia do apartamento, “Onibaba”, além de obras da própria A24, como “Hereditário”, “A Bruxa” e “A Ghost Story”, conseguindo unir essa preocupação com o personagem, sua psique, e as metáforas sociais, mas sem descartar os elementos de gênero, aos poucos, a tentativa de cineastas de se encaixarem em uma certa “fórmula A24” vem esvaziando a potencialidade desses filmes. Mais do que isso, essa visão de elevação artística tem impossibilitado a essas obras funcionarem dentro dos gêneros, o que é o grande mérito dos melhores longas do estúdio. Não que esse seja o resultado dominante no momento, ainda vemos trabalhos no mínimo curiosos ao lidarem conscientemente com gêneros, como o ótimo “A Lenda do Cavaleiro Verde”, os bons “Morte, Morte, Morte” e “Pearl”, e o razoável, mas ousado “X”. Porém, não são poucas as obras na linha de “Lamb” e do filme em questão, “Criaturas do Senhor”, que sentem o peso da necessidade do drama psicológico e metafórico.

Fica ainda mais claro isso quando colocamos “Criaturas do Senhor” em perspectiva com a recente minissérie “Mare of Easttown”. Por mais que sejam bastante diferentes em muitos aspectos, ambas vão se passar em uma pequena cidade costeira e fria, em que todos se conhecem, mas parecem pessoas distantes, e o foco maior está na visão desses personagens traumatizados do que na investigação de um crime. Por mais que os formatos sejam diferentes, a obra da HBO consegue ser dramaticamente poderosa sem nunca subjulgar o mistério para que isso ocorra. E é justamente por isso que, mesmo que as relações entre os personagens sejam distantes, nós nunca perdemos o interesse por eles. 

Já em “Criaturas do Senhor”, novo longa das diretoras Saela Davis e Anna Rose Holmer, a visão do drama psicológico, da metáfora e do comentário social como únicos motivadores sensoriais para o público fazem do thriller algo completamente secundário. Não à toa, o crime em si é apresentado apenas na metade do filme, não dando tempo algum para nos relacionarmos com essa mãe protegendo o filho ou com consequências mais profundas daquela ação. Assim, sobram apenas cenas com conteúdo interessante, como a da vítima sendo rejeitada pela cidade, enquanto o potencial criminoso vivendo sua vida tranquilamente, e metáforas aos montes, que ganham apenas um pouco de vida na forma como as ostras são filmadas com atenção e proximidade. Entretanto, não há um convite à participação do espectador, somos meros olhos vendo ações cotidianas e distanciadas sobre personagens muito difíceis de se importar pela forma como são retratados. Com isso, o tema sério se perde em um vazio dramático de uma encenação desconvidativa e pseudo profunda. É a ideia do drama temático como único motivador para uma obra que no fim não funciona em nenhum dos gêneros que imagina trabalhar, seja por rejeitar um deles, seja por valorizar demais o outro.

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