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|Crítica| 'Carvão' (2022) - Dir. Carolina Markowicz

|Crítica| 'Carvão' (2022) - Dir. Carolina Markowicz

Crítica por Victor Russo.

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'Carvão' / Pandora Filmes

 

Título Original: Carvão (Brasil)
Ano: 2022
Diretora: Carolina Markowicz
Elenco : Maeve Jinkings, César Bordón, Rômulo Braga, Daniel Valenzuela e José Luis Arias.
Duração: 107 min.
Nota:4,0/5,0
 

Entre o julgamento divino e a sobrevivência, “Carvão” banaliza a morte em um mundo surpreendente que joga sob suas próprias regras

"Carvão”, estreia em longas de Carolina Markowicz, parece meio banal em seus minutos iniciais. Uma família pobre, em algum lugar nunca especificado no interior do Brasil e que sobrevive trabalhando com um negócio pouco lucrativo: fazendo carvão. Mas o longa está longe de ser convencional ou aquilo que a gente esperava em suas primeiras cenas, assim como o carvão que dá título ao filme não é apenas uma rocha que serve como combustível.

Na verdade, o carvão aqui tem tudo a ver com o ato de queimar, de esconder corpos até que aquilo vire cinzas e não deixe rastros. Porém, o que pode soar brutal (e até é em certo sentido) aqui é filmado com indiferença por Carolina, quase como se aquelas pessoas tivessem tão acostumadas com a morte que o ato de queimar alguém não lhe causasse qualquer ressentimento.

É bem verdade que inicialmente até há alguma dúvida que paira sobre os personagens. Porém, tal insegurança pouco está ligada ao ato de tirar uma vida, mesmo se tratando de pessoas que nunca mataram antes. Na verdade, a preocupação das personagens mais tem a ver com uma relação divina, o medo de ser punido. Não à toa, a protagonista vai buscar uma resposta com o padre da cidade antes de decidir o que fazer.

Mas, no fundo, aquela resposta pouco importa. Eles já estavam decididos. Endurecidos pela vida e presos a um universo particular sem esperança de futuro que faz de uns poucos trocados quase um objeto de ostentação, a possibilidade de cometer um crime para ter uma vida um tantinho mais digna se engrandece frente a uma punição divina que pouco lhes é palpável. E assim o fazem, sem remorso, sem pensar em uma forma mais indolor de sacrificarem aquele que amam. No final, o que importa mesmo é ele virar carvão, sem deixar rastros do passado e abrindo possibilidades para o futuro.

É só quando essa relação banal com a morte se estabelece que finalmente entendemos os personagens. A frieza toma conta da casa, os desejos sexuais são reprimidos ou escondidos, o filho pequeno entende a situação sem sofrer ou ao menos se preocupar. Essa hostilidade calada que distancia os personagens é tanta que até um traficante, acostumado a empilhar corpos, é incapaz de conviver ali. 

E é justamente nesse ponto que “Carvão” se torna ainda mais diferente do que imaginávamos inicialmente. Essa combinação da história de uma família pobre no interior do Brasil se unindo à de um traficante, juntando esses dois lados da morte em uma espécie de esconderijo imperfeito, é sem dúvida uma das premissas mais inusitadas que o cinema nacional já produziu.

Porém, como nenhum filme vive de premissa, cabe a Carolina desenvolver aquilo que soa diferente demais. E ela o faz puxando para a normalidade, pegando o macro (crime internacional) e o obrigando a se adequar ao micro (vida interiorana), encontrando no meio do caminho espaço para criar humor na desgraça e tensão ao colocar os personagens como vigiados e paranóicos por um crime que nunca chegam nem perto de serem descobertos. 

Entretanto, ao nos tornar cúmplices daquele crime, a direção nos estimula a buscar uma solução ao lado daqueles personagens. Não os vemos mais como assassinos ou transgressores, já que Carolina nunca os julga e até os humaniza ao retratar o dia a dia, as dificuldades, as impossibilidades de viverem como desejam. 

Assim, a narrativa nos convida a dar um desfecho para tudo aquilo. E, no fundo, sabemos que a única possibilidade de finalização para uma história que começou com uma morte é mais morte. Se inicialmente a punição divina era ignorada pelos personagens, agora, mesmo sem intenção, eles zombam das figuras religiosas ao cometer o novo crime sobre uma toalha de santa católica, o que não podia ser mais simbólico. Não que os personagens tenham um desejo vil em caçoar de Deus, muito pelo contrário, eles ainda se mantêm religiosos. Só que no universo que vivem tudo se torna menor do que poder viver, e não apenas sobreviver, no final do dia.

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