|Crítica Cannes 2023| 'Retratos Fantasmas' (2023) - Dir. Kleber Mendonça Filho
Crítica por Victor Russo.
'Retratos Fantasmas' / Vitrine Filmes
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O "normal" visto pelo olhar do cinema. Kleber Mendonça Filho retrata o seu amor por Recife, sua casa, os seus filmes, os cinemas e as mudanças da cidade com um tom pessoal, mas de uma forma que só o cinema é capaz de mostrar e fazer sentir
Desde as primeiras décadas de existência, sobretudo quando o cinema começou a estabelecer uma linguagem mais sólida, teóricos passaram a discordar sobre a função dessa arte. Ou melhor, a vocação dela. Entre os formalistas e os realistas (e as outras diversas teorias entre elas e se misturando a elas), a ideia de que o cinema é a arte que melhor respondeu o "problema da forma" (leia-se: capacidade de representar a realidade) permanece em voga até hoje. A capacidade de mostrar a imagem em movimento (ainda que sendo uma ilusão) possibilitou ao cinema aquilo que a fotografia e a pintura não eram capazes. Alguns diriam, inclusive o grande teórico André Bazin, que o cinema libertou essas duas artes do peso do realismo. Apesar de vivermos um momento em que o cinema cada vez mais se volta para essa noção de realismo (ainda que um realismo bem diferente daquele proposto por Bazin e os demais teóricos), a sétima arte nunca será o real puro e simples. Sempre haverá a intervenção, o que vemos e ouvimos sempre será um recorte que o cineasta escolheu mostrar, enquanto um mundo fílmico permanece fora de campo. Isso é básico, ainda que tal intervenção possa alterar mais ou menos o "real" (claro que há outros muitos elementos além do enquadramento/decupagem, e alguns explorarei a seguir).
Assim, à primeira vista, "Retratos Fantasmas" pode até soar como um cinema de mostração sobre uma Recife que teve sua arquitetura alterada ao longo dos anos. Mas não é só isso. Não há intimismo apenas na forma como Kléber se mostra apaixonado e fascinado pela sua cidade, história e pelo cinema (tanto o seu quanto os demais filmes que ajudam a construir essa narrativa). O documentário é acima de tudo a cidade, o cinema e as transformações visuais e sociais vistas pelo olhar de uma câmera (entenda "câmera" aqui como todos os elementos que compõem a estética fílmica) que mira, se impressiona, brinca e fala com a gente.
Nesse sentido, há uma fala (que não lembrarei literalmente) e uma cena que representa bastante o todo da obra. Primeiro, falando sobre a sua vontade de filmar a rua em que mora "do jeito que ela é" e à noite, o cineasta percebeu a incapacidade da câmera de fotografá-la da forma que o olho nu a enxergava. O aparato se mostrou falho na representação "pura" da realidade, e, por isso, os artifícios de ilusionismo do cinema tiveram de entrar em ação para torná-la visível aos olhos da máquina. Segundo, tal relação da realidade e do cinema se torna mais evidente em um dos momentos finais do documentário, quando Kléber conversa com o uber e faz uma brincadeira (que não revelarei para não estragar a surpresa desse momento fascinante para quem ainda não assistiu) com o uso de efeitos visuais que vão justamente em direção aos desaparecimentos do que pertence à cidade, os tais "fantasmas" que o título sugere.
Essa relação da realidade (e história) ao olho do cinema vai ainda percorrer todo o documentário nas escolhas do que mostrar e o que não mostrar. A montagem, claro, é a responsável por isso de forma geral. Porém, mais interessante é quando o cineasta revela seu sentimento pessoal com os cinemas da cidade por meio de imagens daqueles que permanecem e os que se tornaram fantasmas. Como os letreiros indicando os filmes em exibição em diferentes momentos criam um recorte histórico peculiar a partir da relação de Recife com o cinema, reconhecendo a população pelo que ela assiste. Mais uma vez, a intervenção do cineasta vai servir para criar um jogo intimista, uma realidade própria, como quando ele diz que o cinema parece falar com ele, por exemplo, quando parte do letreiro é escondido por uma árvore. Não se trata então da realidade ou da história pura e simples, mas "Retratos Fantasmas" encontra sua beleza justamente em como o seu diretor vê e se identifica com sua história e a da sua cidade. Como diria um dos maiores teóricos sobre documentários da história, esse formato não é o real, mas um tratamento criativo da realidade.