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|Crítica Cannes 2023| 'Anatomy of a Fall' (2023) - Dir. Justine Triet

|Crítica Cannes 2023| 'Anatomy of a Fall' (2023) - Dir. Justine Triet

Crítica por Victor Russo.

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'Anamoty of a Fall' / Justine Triet

 

Título Original: Anatomie d'une Chute (França)
Ano: 2023
Diretora: Justine Triet
Elenco : Sandra Hüller, Milo Machado-Gra, Swann Arlaud, Jehnny Beth e Samuel Theis.
Duração: 151 min.
Nota: 4,0/5,0

 

A câmera, supostamente apenas observadora, nos manipula sem que percebamos, criando um jogo quase invisível entre o mostrado e o omitido

"Anatomy Of A Fall” se desenha inicialmente como um filme de tribunal, à primeira vista, daqueles super tradicionais que buscam revelar quem é o culpado por um possível assassinato. Porém, por mais que em algum sentido a descoberta de como aconteceu aquela morte seja uma questão que move a trama, ela é muito mais um mcguffin do que a intenção principal de Triet. Ou seja, é a partir desse mistério que o longa vai se direcionar para os seus verdadeiros interesses, um estudo de personagens que muito é revelado ao mesmo tempo que nada o é.

Triet se coloca então na posição de única que detém todas as respostas. Mas ela não tem nenhuma intenção de revelá-las. Só será mostrado aquilo que os personagens forem capazes de descobrirem ou de acreditarem que sabem. As memórias os traem (ou não) como acontece com o filho ao se deparar com novas possíveis provas. A obsessão os cegam, sobretudo no caso do promotor. E a verdade permanece intocada, escondida em um lugar que apenas Triet é capaz de acessá-la. Muitos poderiam dizer que a própria cineasta não sabe o que realmente aconteceu, o que já não acredito, principalmente por como ela decupa o filme, conduzindo a câmera quase como uma sniper, mirando nos personagens em momentos específicos quando julga necessário. A câmera só observa os personagens, não os julga. Ou pelo menos até certo ponto. Triet toma um lado nos momentos finais (ou durante o filme todo e apenas demoramos para perceber), ainda que de forma sutil. Só que isso nada atrapalha a nossa percepção para com a obra, já que nunca saberemos se ela busca uma inocência ou se fascina pela transgressão.

É justamente essa dicotomia que flui por todo o longa, enquanto a câmera parece sempre disposta a revelar algo nos diálogos (e são muitos) e nas atuações. Sandra Huller, vivendo sua xará Sandra, quase brincando com uma possível persona da atriz, se mantém impassível, evitando ao máximo revelar qualquer emoção que a denunciaria. Mais uma vez, essa observação é feita tanto diegeticamente, ou seja, pelos personagens ali presentes, quanto por nós espectadores, convidados a formar uma própria opinião sobre o caso e os personagens, mesmo que nunca saibamos a verdade. É uma direção que busca esses vestígios, assim como ambos os lados nessa batalha de tribunal. Mas, de novo, esse olhar de Triet nada tem de inocente, ainda que se esconda bem sob o véu da imparcialidade. Ela escolhe o que, quem e quando mostrar, manipulando o espectador silenciosamente pela mostração ou omissão. O melhor exemplo disso talvez seja o flashback em que vemos até certo ponto, para depois sermos levados de volta ao tribunal e escutarmos apenas o áudio gravado pelo marido falecido do restante daquele evento, exatamente a única coisa que os personagens ali presentes tiveram acesso o tempo todo.

Isso não quer dizer que a visão de Triet seja unilateral, defendendo um ou outro personagem o tempo todo. Isso jamais funcionaria, faria o público perceber cedo demais que estava sendo manipulado. Assim, ela torna os personagens complexos pelo que sabemos e pelo que é omitido. Sugere a inocência da protagonista em alguns momentos, enquanto em outros revela seus desconfortos e, principalmente, a capacidade de manipular, como na entrevista que abre o filme e, por isso, podemos esquecer, justamente por ocorrer antes da morte, antes de sabermos sobre o que é o filme. Claro que esse jogo de revelações funciona ainda melhor por conta do afiado elenco. Huller obviamente se destaca, ela é o principal objeto de investigação por ser a acusada. Mas sua grande atuação nunca sequestra o filme para si, nunca impede os outros personagens e atores de crescerem. Mais do que isso, ela sabe quando a personagem tem que se diminuir.

Talvez o único deslize do longa em relação a sua proposta esteja em um outro flashback, acompanhando o filho. Não que ele seja suficiente para revelar o caso, mas naquele momento Triet não só conta demais a partir da sua câmera, como trai um pouco a sua lógica principal, de não reencenar, não espetacularizar, de realmente se manter observando os desdobramentos daquele julgamento apenas junto àqueles personagens. Ainda que esse flashback tenha uma função interessante na forma como a diretora toma um lado, como disse anteriormente. 

No fim, o vencedor da Palma de Ouro deste ano só parece convencional em um primeiro momento, mas vai revelando um poderoso jogo cinematográfico de manipulação a partir de uma decupagem que escolhe o que mostrar e como fazê-lo. A resolução impossível do caso só poderia ser descoberta pela diretora, mas ela nos conduz com uma perspicácia fascinante, fazendo o espectador acreditar que está tirando as próprias conclusões, enquanto na verdade está sendo moldado por uma cineasta habilidosa. É o poder do cinema e da imagem em seu sentido mais puro.

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