|Crítica| 'Batem à Porta' (2023) - Dir. M. Night Shyamalan
Crítica por Victor Russo.
'Batem à Porta' / Universal Pictures
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Shyamalan se aproveita das mudanças do mundo para retornar aos seus temas recorrentes (fantasia x racionalidade, paranoia, sacrifício) sob uma nova ótica
Poucos diretores têm um cinema tão divisivo quanto M. Night Shyamalan. Depois de ganhar o mundo com “O Sexto Sentido”, ser elogiado por “Corpo Fechado” e “Sinais” e ainda ser relativamente elogiado por “A Vila”, o cineasta passou a ter quase todos os seus trabalhos seguintes rejeitados por grande parte da crítica e do público, ao mesmo tempo que mantinha uma base sólida de “fiéis” na cinefilia. O diretor teria virado refém de seu próprio sucesso ou o cinema estava mudando?
Criou-se quase um senso comum sobre o primeiro, que Shyamalan teria virado refém do plot twist ao final dos filmes, o que em parte pode ser verdade, mas está longe de representar o todo. Não, não sou daqueles que gosta de todos os filmes do diretor. Na verdade, não gosto de quase metade da sua filmografia. Mas associar a rejeição crescente ao cineasta aos plot twists dos seus filmes é uma análise bastante rasa. Isso fica claro quando percebemos que o aumento das críticas coincide com a grande mudança no blockbuster contemporâneo, e, consequentemente, em seu público: a trilogia do Batman de Christopher Nolan e o surgimento do MCU.
Muito mais do que um diretor de filmes de terror ou de plot twists, o cinema de Shyamalan sempre foi sobre acreditar no místico, no sobrenatural, na fantasia. Um embate entre fé e racionalidade, em que, quase sempre, aquelas que aceitam essa fantasia se libertam e são capazes de ver o todo. Com exceção dos dois filmes “contratados” e mais fracos de sua carreira (“O Último Mestre do Ar” e “Depois da Terra”), todas as demais obras do cineasta têm essa questão como fundamental. Ele é um dos cineastas resistentes a acreditar na fantasia em meio a um mar de obsessão pela racionalidade e realismo no cinema hollywoodiano.
Porém, se os temas se repetem em seus filmes (fé x racional, isolamento, paranoia, sacrifício), Shyamalan os observa sob óticas diferentes para universos e períodos históricos distintos. Então, se “Corpo Fechado” embarcou numa recusa aos filmes de super-herói que começavam a aparecer e “Sinais” e “A Vila” retratavam a paranoia do começo do século, “Batem À Porta” traz o cinema do cineasta para o momento atual: uma sociedade devastada após a pandemia da Covid-19.
Com isso, o isolamento, a paranoia e o sacrifício, temas recorrentes na filmografia do cineasta, aqui adquirem um novo valor, o que vai se refletir em sua encenação e universo particular. Com exceção dos “filmes encomendados”, Shyamalan sempre falou sobre uma questão gigante sob uma ótica pequena, pessoal, muitas vezes familiar. Foi assim, por exemplo, na trilogia de super-heróis, em “Sexto Sentido”, “Sinais” ou “Tempo”. Entretanto, o escopo talvez nunca tenha sido tão reduzido como em “Batem À Porta”.
Aqui, o medo do fim do mundo se torna real a partir de uma premissa fantasiosa e absurda que nunca é explicada. Ou você aceita, ou jamais embarcará no que o longa propõe. O apocalipse bate à porta, sabemos das catástrofes que vão se desenhando pela televisão, mas Shyamalan nos restringe a uma pequena cabana amontoada de pessoas. Faz dos seus closes expressivos ou movimentos longos e sutis o suficiente para nos imergir naquela situação específica com aqueles personagens. Ele fala sobre o macro, mas o seu interesse está no micro, nas ações humanas, os sacrifícios que podem salvar a humanidade.
Assim, ele recusa suas comuns reviravoltas. As cartas são postas na mesa desde o início. Temos a situação, os personagens, o que eles devem fazer e quais serão as consequências de seus atos. Shyamalan até brinca com novos rumos, como quando um dos quatro “estranhos” é reconhecido. Mas, dessa vez, o seu interesse não está em se desviar. “Batem à Porta” faz do minimalismo de seu microcosmo sua força. Só resta aos personagens acreditarem na fantasia, rejeitarem a racionalidade e tomarem uma decisão. E é justamente nessa impossibilidade de uma saída, na recusa à fuga e no aprisionamento dessa mise en scène que se encontra o poder emocional e angustiante de “Batem à Porta”. O cineasta revisa mais uma vez o seu cinema e o faz conversar com os dilemas e dores da contemporaneidade como não fazia há muito tempo. O resultado é dolorido e belo. Pessimista e otimista. Onde há perdas, há também a possibilidade de um futuro melhor para aqueles que tiverem fé/esperança.