|Crítica| 'Alma Viva' (2022) - Dir. Cristèle Alves Meira
Crítica por Victor Russo.
'Alma Viva' / Mostra SP
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“Alma Viva” faz da criança observadora um canal para falar sobre o pós-morte
Na escuridão, a avó tenta se conectar com o espírito do marido que acabou de morrer. A câmera corta e vemos primeiro só um olho, antes de percebermos que ali tem uma menina, de pouco mais de 10 anos. Não é um prazer voyeur como tanto discutimos no cinema, está mais para uma curiosidade receosa. Um olhar que tem tudo a ver com a câmera de Cristèle Alves Meira, uma câmera que não se fascina nem teme. Uma câmera que pouco julga. Logo essa câmera é percebida pela avó e a observadora é levada a ajudá-la nessa tentativa de se conectar com espíritos. Nessa sequência, a cineasta condensa habilmente quase tudo que se seguirá no longa exibido em Cannes e na Mostra de São Paulo e que será o representante de Portugal para o próximo Oscar.
Muito se discute sobre o uso da criança como protagonista, sobretudo em obras mais melodramáticas em cenários de catástrofe ou desespero. Isso porque essa figura fragilizada pode ser uma saída fácil para chocar o espectador com os horrores de determinada situação, o que necessitaria mais substância se colocado um adulto em primeiro plano. Por sorte, “Alma Viva” está mais para “Alemanha, Ano Zero” e “Vá e Veja” nesse sentido, claro que em contextos completamente diferentes, já que aqui não há horrores de uma Guerra, apenas uma jovem sendo canalizadora sobre o lidar com a morte.
Então, desde a cena inicial Cristèle nos prepara para a morte como tema central da obra. Não só naquela espécie de ritual que abre o longa, mas nos mais diversos elementos que vão se apresentando, como a pesca agressiva usando dinamite que mata dezenas de peixes ao mesmo tempo e a própria exposição desses peixes sendo cortados ao meio.
Com isso, quando chega o momento de virada do longa, a morte central que separa a menina de quem ela mais ama, aquilo é encarado até com certa naturalidade pela garota, assim como é pelo público. Dessa forma, aquela jovem se torna a única capaz de ver a morte além do sentido humano, encontrando no pós-morte uma maneira de seguir conectada com aquela pessoa que tanto ama.
Claro que isso só é possível porque, em meio a essa temática central da morte, Cristèle não se esquece de que sem a vida o conceito de morte se perde. Então, somos levados a acompanhar essa garota e o seu ponto de vista para o viver em uma cidade interiorana de Portugal, praticando os atos mais mundanos. É justamente aí que o longa constrói a relação mais forte e que sustentará toda a obra, uma ligação entre neta e avó, um amor demonstrado nos menores e mais grandiosos gestos, como uma simples diversão compartilhada ao dançar uma música que tem muito mais a ver com a geração da jovem do que da avó.
Nesse contexto, “Alma Viva” não esquece também dos demais personagens que permeiam aquela cidade e família. Enquanto a relação mais íntima fica quase restrita a avó e neta, os demais personagens têm a sua relação com a mulher no final da vida das mais diversas formas. Seja em um contato mais próximo e físico como a tia e o tio da criança que moram junto com a mãe, seja em uma conversa entre a neta e uma antiga conhecida da avó ou mesmo naqueles que só terão relação com ela depois de sua morte na narrativa, como a mãe da menina, o outro tio mais rico e outros integrantes da cidade.
Então, se o pós-morte une neta e avó de imediato e flerta com um terror espiritual, os demais personagens parecem levar um tempo para entenderem sua relação com a falecida. A mãe da garota desmorona, sua irmã cria uma defesa por meio da rejeição, o irmão cego aceita a situação como algo natural, o mais rico é forçado a se fazer presente, enquanto boa parte da cidade vai revelando aquilo que realmente pensam e não tinham coragem de dizer em vida.
Assim, a morte vira também o mote central para o desenvolvimento da trama e de todas as personagens, das mais presentes às mais insignificantes. E é justamente essa morte que revela o entorno e o afasta da família, ao mesmo tempo que une os irmãos e a neta em uma unidade que não tinha sido vista antes.
Dessa forma, “Alma Viva” não deixa de ser um filme bastante simples em seus menos de 90 minutos de rodagem, mas consegue ser tocante e sombrio ao lidar com a morte das mais diferentes formas, sobretudo como uma mudança ou revelação para aqueles que ficaram vivos e têm de lidar com esse momento, revelando o óbvio: a morte como o momento que mais tememos.