|Crítica| 'Alma do Deserto' (2025) - Dir. Mónica Taboada-Tapia
Crítica por Raissa Ferreira.
![]() |
'Alma do Deserto' / Retrato Filmes
|
Mónica Taboada-Tapia propõe uma reflexão da ideia de identidade a partir da indissociável jornada de gênero e etnia de sua protagonista
O caminho que se traça do ponto de partida do longa - uma coprodução Brasil-Colômbia que venceu o Queer Lion no Festival de Veneza -, até seu desfecho, é a busca de Georgina Epiayú até finalmente exercer sua cidadania ao votar nas eleições Colombianas. No entanto, esse recorte se estabelece muito mais como um questionamento acerca da ideia de identidade, o que ela é de fato, material ou imaterialmente, o que carrega e significa e como, ou se, precisa ser reconhecida. Dessa forma, Mónica Taboada-Tapia determina sua posição como operadora do registro, primeiramente do outro lado, daquele que vê Georgina de frente, solicitando sua documentação, quase tornando a protagonista um mistério desse documentário em que ela é centro, como alguém que não é apresentada com intimidade, a partir de como se vê, mas abrindo essa janela como a abre às funcionárias da repartição pública, dando seu nome e pedindo que este seja reconhecido. A observação resiste nesse lugar do outro que vê, por um longo tempo, juntando fragmentos da história e personalidade de Georgina a partir de vizinhos e outros encontros, e de como o deserto forma um grande espaço solitário ao seu redor. Essa perspectiva acaba por enfraquecer a obra em certos pontos, determinando certo distanciamento que nem sempre soa de acordo com a proposta, mas vai ganhando fôlego conforme permite uma aproximação de sua personagem. Taboada-Tapia não pretende que o meio seja opressivo com a mulher centro da narrativa, porém que fique destacado seu isolamento. Esses elementos, bem como a busca pela identidade na forma de documento reconhecido pelo governo, contam a trajetória de Georgina enquanto mulher trans, mas, também, como mulher da etnia Wayúu, fazendo com que sua história reflita um cenário muito maior de apagamento de etnias, comunidades, culturas e idiomas na Colômbia.
Para essas pessoas, de identidade tão afirmada por esses fatores, ainda é necessário recorrer a burocracias impostas para terem direitos básicos assegurados, para serem reconhecidos e terem sua continuidade garantida. É assim que a busca de Georgina por um documento com seu nome feminino reflete como sua concepção de identidade é bem resolvida, mesmo que não aceita por muitos, ainda que necessite de validações externas para ser atestada legalmente. Esse processo leva aos poucos a pessoa espectadora a se aproximar desta mulher, conforme a diretora também permite estar mais íntima de sua personagem, com o devido cuidado e sensibilidade com suas vivências. Pensar puramente na relação entre as etnias colombianas que requerem seus documentos para terem acesso à saúde e ao voto, por exemplo, já seria um caminho bastante interessante para pensar o conceito de identidade. No entanto, ao colocar no centro uma mulher trans, já idosa, com toda uma vida vivida, Alma do Deserto amplia essa reflexão ao gênero e à dificuldade de ser uma pessoa LGBTQIA+ em certos espaços. É uma vizinha de Georgina que conta como ela foi expulsa de casa pelos irmãos que não aceitavam sua identidade, mas é a própria protagonista que partilha como sua casa foi queimada junto de seus documentos antigos. Com toda uma vida como Georgina, a mulher é confrontada por seu nome morto, atrelado burocraticamente a suas impressões digitais, um caminho tortuoso que o sistema a força a passar na busca pelo reconhecimento de quem verdadeiramente é.
Taboada-Tapia aos poucos vai dando voz, rosto e espaço para que Georgina divida sua história, sempre compreendendo seu lugar do outro lado da câmera, mas chegando próximo ao fim a uma posição mais calorosa com sua personagem. A solidão é fundamental ao longa, pois mostra além de um isolamento de certas etnias, a solitude da mulher trans. Georgina ressalta sempre um único relacionamento no passado, as preocupações atreladas à finitude da vida, de não ter família, quem cuide dela ou quem encontre seu corpo e o reconheça sem os documentos que aguarda. Alma do Deserto capta seu fluxo de pensamento de forma livre, atrelando os relatos a imagens que destacam por vezes o deserto vazio ao seu redor e, em outras, seu rosto preenchendo a tela, reforçando a identidade que carrega independente do papel passado. O que se passa nessa observação quase totalmente passiva de Taboada-Tapia é a compreensão de que Georgina ou qualquer outro não precisariam de um atestado do governo para terem suas identidades definidas, mas justamente a influência do homem branco e o apagamento de grupos étnicos indígenas força a ideia de que ainda que estas identidades estejam solidificadas, por idiomas, costumes, declarações ou como se sentem, acaba sendo bastante importante o reconhecimento definitivo para resistirem e terem acesso às imposições do sistema. Afirmar sua própria identidade é revolucionário para Georgina, e para o meio ao seu redor, mas finalmente conquistar o documento que é seu por direito é ainda mais. O que o filme ressalta, por esse cruzamento de uma perspectiva trans e indígena, não é que um pedaço de papel impede ou permite a essa mulher ser quem é, mas é a obtenção de um direito básico e muito valioso para ela enquanto mulher, cidadã e Wayúu.
Assim a foto 3x4, as conversas com funcionárias que repetem seu nome e, finalmente, o registro do voto nas eleições, se tornam mais do que imagens de um cotidiano comum, mas pequenas vitórias, símbolos de uma identidade afirmada ao mundo, além de seu deserto particular. A trajetória de Georgina não é de forma alguma focada no pesar dessa longa burocracia, de suas perdas ou do quão triste pode ser sua solidão, mas na resiliência que existe em sua vivência, em como essa mulher enfrenta cada etapa, processo e barreira, ultrapassando tudo para que ninguém a impeça de ser quem é. Essa é a maior força que Alma do Deserto busca em seus registros, de como Georgina jamais abandonou sua própria identidade e como luta por ela todos os dias.