|Crítica| 'A Sociedade da Neve' (2023) - Dir. J. A. Bayona
Crítica por Victor Russo.
'A Sociedade da Neve' / Netflix & O2 Play
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Sem espetacularizar tanto o fato, J. A. Bayona rejeita o individual e a religião, e vê na coletividade a única forma de sobrevivência
Premiado no Festival de Veneza e a escolha da Espanha e grande aposta da Netflix para o Oscar de Melhor Filme Internacional, o mais curioso de “A Sociedade da Neve” é pensar na abordagem de Bayona em relação às suas outras obras da carreira. Diretor que ganhou reconhecimento mundial pelo terror “O Orfanato” e depois foi dirigir o drama de catástrofe “O Impossível”, antes de retornar à Espanha para fazer a boa fantasia “Sete Minutos Depois da Meia-Noite” e de novo em Hollywood com o fraco “Jurassic World: Reino Ameaçado”, ambos filmes que flertam com o terror formalmente em maior ou menor escala, o seu novo longa parecia um prato cheio para explorar tanto a espetacularização da catástrofe quanto o horror mais direto da situação, sobretudo por ser um acontecimento que tem como elemento mais famoso os sobreviventes terem comido a carne daqueles que morreram.
Entretanto, Bayona olha para o fato de forma até um tanto inesperada. Não que o filme não se use de uma proposta formal típica do Oscar Bait, já desde “O Orfanato” o seu cinema era intoxicado pelo fazer estadunidense e é claro que uma produção da Netflix financiada para tentar o Oscar não seria diferente. Também não é dizer que o filme abre mão daquele melodrama mais apelativo, o que mais uma vez vai em direção ao “filme de Oscar”. Porém, nada disso está na ideia central do longa, são mais desvios protocolares do que a essência da obra. Isso porque, o cineasta espanhol, desde a sequência inicial em que o time perde o título porque um dos jogadores tentou resolver tudo sozinho, olha acima de tudo para a sobrevivência e vivência a partir do coletivo. Mais do que uma necessidade, o longa enxerga na união a única forma de vencer um sistema que oprime o ser humano e o força a trabalhar em sua individualidade sob a lógica de que basta o esforço pessoal para conquistar os seus objetivos. O jogo de rúgbi, a manifestação no Uruguai e sobretudo os meses no gelo vão solidificar esse olhar para o grupo.
Tal percepção vai ser fortalecida em como o cineasta sempre ou filma diversos personagens juntos no mesmo plano, seja pequenos em meio a uma imensidão de neve, seja grandes e confinados, muitas vezes se abraçando para tentar se esquentar, ou os filma individualmente em primeiro plano, fazendo questão de não mostrar apenas um, mas trazendo uma montagem que pula do close de um para o outro até passar por diversos representantes daquele grupo. Mesmo quando as ações são mais individualizadas, como a jornada final realizada pelos dois mais aptos fisicamente ou o ato de cortar os corpos para se alimentar, feito às escondidas em uma rejeição ao horror mais direto e gráfico que é comum na carreira de Bayona, essas ações vão ocorrer com o consentimento de todos e para o benefício de todos.
Então, se há um pensamento estético que muitas vezes vai se assemelhar ao cinema estadunidense, os valores empregados a partir dessa abordagem formal vão carregar o exato oposto daquilo que o país da “liberdade”, do “sonho americano” e da “meritocracia” sempre pregou. Isso se acirra ainda mais quando entendemos que tais valores não são apenas discursos políticos e ideias de vida, mas que tudo isso só existe e se solidificou no imaginário americano e do resto do mundo por conta do fortalecimento dessa visão em obras hollywoodianas. Nesse sentido, por mais que “A Sociedade da Neve” se utilize de um aparato de Hollywood com o objetivo agradar essa mesma indústria em sua premiação anual, o ideal implícito na sobrevivência é não só a rejeição ao dogmatismo religioso e do caminho traçado individualmente, mas uma ideia de união de classe que vai muito mais em direção ao marxismo.
Claro que defender o longa como um manifesto comunista contra o capitalismo seria também uma ingenuidade, não só pelo aparato de produção e distribuição, mas, principalmente, porque o cinema americano está tão impregnado em Bayona que ele não resiste à tentação de individualizar a relação emocional com o espectador e seleciona um protagonista para narrar alguns acontecimentos e pensamentos, o que só não chega a ser uma contradição maior à toda a proposta porque a narrativa em si não acontece a partir do seu olhar, recorrendo a ele em apenas momentos específicos e com o objetivo de criar um joguinho meio bobo de roteiro em relação a expectativa do público com o protagonista-narrador.
É bem verdade também que “A Sociedade da Neve” não deixa de ser um longa super marcante apenas por se encaixar nesse sistema de produção estético, mas porque ao olhar inteiramente para o coletivo em seu dia a dia, Bayona diminui os seus grandes feitos. Então, se a queda do avião com cortes rápidos nos impacta pelo desespero que demora a ser digerido enquanto a imagem nos bombardeia com microeventos, o restante do longa não tem essa mesma preocupação em reforçar as ações. E o que não acontece às escondidas e só nos é dito, é feito de maneira quase protocolar, como a longa caminhada de dez dias que dura menos de cinco minutos, pouco mostra e é acompanhada de um voice over e uma trilha melodramática, rejeitando à imagem a possibilidade de nos fazer engajar com aquele grande feito.