|Crítica| 'A Semente do Fruto Sagrado' (2025) - Dir. Mohammad Rasoulof
Crítica por Victor Russo.
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'A Semente do Fruto Sagrado' / Mares Filmes
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A transformação da narrativa para um país clamando por mudança, encontra nas escolhas de Mohammad Rasoulof abordagem direta e a capacidade do agora em filmar a realidade
A Semente do Fruto Sagrado, para muitos ganhando conhecimento por conta das indicações aos prêmios americanos, disfarçando-se de filme alemão para poder ser recebido por quem controla a narrativa, à outros chegou alguns meses antes já com uma mística que sobrepõe e se entrelaça com o longa. Mohammad Rasoulof, um dos diretores que forma essa gama de cineastas políticos e anti-regime no cinema iraniano, fugiu à pé de seu país, após ser sentenciado à prisão e à chibatadas, e foi aparecer no Festival de Cannes para a premiere de sua obra, que o governo do Irã tanto tentou impedir de ser exibida. Cria-se então uma espécie de simbiose nem sempre tão difícil de distinguir, em um cinema que historicamente rompe as delimitações mais claras entre documentário e ficção, o diretor não só expõe imagens reais em meio a sua narrativa, como vira uma espécie de símbolo que torna o longa mais do que apenas os acontecimentos encenados em tela, ainda que esse conhecimento extra não seja uma necessidade para o funcionamento mais potente do longa.
Muito se disse sobre o filme ser um grito contra o patriarcado, o que certamente é, mas é importante perceber a necessidade do agora para ele ganhar vida. Há alguns poucos anos, um levante, muitas vezes associado aos mais jovens, passou a ganhar vida no Irã, em grande medida, encabeçado por mulheres que tentam a todo custo romper todas as imposições mais misóginas daquele regime teocrático e completamente pautado em costumes ditados por homens. O jogo aqui funciona em mão dupla correndo na mesma direção, não exatamente em uma impossibilidade de distinguir realidade e ficção, mas justamente o oposto, na evidência clara do que é o cinema bastante direto de Rasoulof e o que é uma apropriação de imagens inseridas por ele para revelar o real inquestionável. É justamente essa segunda que dá uma sustentação de verdade à primeira, ainda que os artifícios sejam sempre moldados por um olhar humano, e, aqui, acentua uma distinção entre os planos pensados de alguém perseguido pelo regime, mas ainda capaz de moldar o acaso para um discurso mais firme e planejado, e aqueles que realmente estavam na rua, apontando os seus celulares como armas contra a repressão, fazendo de lives no Instagram ou vídeos para o Tik Tok um poderoso uso das redes sociais contra o autoritarismo, algo que só poderia ser possível em um mundo contemporâneo de rápida difusão de imagens (leia-se aqui tanto fotos quanto vídeos) por todo o globo ao mesmo tempo, e que cada um tem a sua disposição, o tempo todo, um aparelho capturador dessas imagens.
Dessa forma, Rasoulof não faz firula e nem recorre ao cinismo típico de obras americanas (mas não restrito à Hollywood, é um mal bem presente em parte do cinema brasileiro inclusive), que pagam de políticas, criando um discurso de ridicularização da oposição, sem realmente propor qualquer tipo de mudança. O cineasta é extremamente direto em seu discurso, para não deixar interpretações, e a inserção de imagens verticais, se por um lado funciona bem ao reforçar o agora, por outro, adquire esse lugar de interrupção forçada consciente para um fortalecimento, às vezes até bastante óbvio, do que está sendo dito e mostrado. A sacada do cineasta está então em como molda sua narrativa ficcional para essas inserções, e, mais do que isso, entende na progressão dela uma forma de impactar por elementos típicos do cinema de gênero, no caso, o thriller, seja na escolha de enquadramentos, como os que sugerem solidão e paranoia (muitas vezes direcionados à figura do pai), ou na transformação do ato final, em como cria tensão na perseguição de carros, na possibilidade de assassinato do casal inocente, e, principalmente, com a mudança da encenação para a utilização de artifícios que remetem muito ao filme de serial killer, a partir do momento que o pai passa a perseguir e aprisionar esposa e filhas, e elas, como uma união de três final girls em uma, tentam sobreviver com rostos desesperados e uma sombra as perseguindo.
Assim, o longa cria essa reflexão, até mais óbvia, do macro para o micro, aquela família como uma representação do país, sendo o pai a figura do estado e os costumes, as filhas o questionamento jovem e o clamor por mudança e liberdade, e a mãe o equilíbrio da balança que deve escolher entre manter a tradição, mesmo contra a sua vontade, ou sair da “zona de conforto” (entre muitas aspas) e endossar a luta. Por mais que não tenha nada de muito genial nessa relação da família enquanto exibição do todo, como Rasoulof nos conduz e trabalha os espaços, o visto e o não visto, a sugestão de foco, para romper com o esperado e levar o longa para outro lugar (literal e metaforicamente) nos 40 ou 50 minutos finais, está o potencial dramático e opressivo de A Semente do Fruto Sagrado. Ele nos prende dentro daquela casa, não permite quase ver o que de fato angustia o marido, senão pelo que ele conta, sugere na figura da amiga das filhas um possível foco narrativo de oposição, ainda que não vejamos de fato as ações que a tiram da narrativa. Mais uma vez, é aquele apartamento o local em que tudo se concretiza em imagem. Dessa forma, quando aquelas mulheres são tiradas daquele lugar de opressão, mas segurança, e levadas para um terreno aberto, sem uma alma viva a quilômetros de distância, o filme finalmente libera a elas a possibilidade de concretizar a luta contra aquele símbolo do patriarcado, matando simbolicamente a opressão a partir da união que soterra aquele homem. É essa transição até de gênero e encenação que serve como a verdadeira representação desse país que clama por mudança para ontem, com as pessoas saindo da segurança dos lares para buscar os confrontos com celular em riste nas ruas.