|Crítica| 'A Garota da Agulha' (2025) - Dir. Magnus von Horn
Crítica por Raissa Ferreira.
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'A Garota da Agulha' / MUBI
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Com estética sombria e horror de referências visuais, Magnus von Horn retrata um cenário de miséria e desesperança centrado nas figuras femininas
Até mesmo colocar os cartazes dos dois últimos filmes de Magnus von Horn lado a lado causam impacto pelo contraste. Sweat é extremamente colorido, o oposto das sombras da fotografia de Michal Dymek que traz para A Garota da Agulha (The Girl with the Needle) uma estética do cinema do começo do século passado, principalmente do expressionismo alemão, mas, mais do que isso, se o longa anterior do diretor era um produto direto de seu tempo, de uma relação fundamentalmente contemporânea com os dispositivos móveis e as redes sociais, sua nova obra, desta vez baseada na Dinamarca, é um recorte do tempo retratado, quase como se tivesse sido enviado para o futuro, mas realizado de fato após a primeira guerra mundial. O sentimento de desesperança de uma Europa devastada, tanto visto em obras que foram realizadas neste período, é sentido aqui com peso, não apenas esteticamente, no reforço da miséria, das sombras bem contrastadas, mas também em um horror que se reflete nas atuações, acontecimentos e sons. Focando-se principalmente nas figuras femininas para elaborar essa dissecação de tempos trágicos, escassos e obscuros, von Horn propõe um desafio entre o que é mais chocante para uma sociedade - ou para a pessoa espectadora - observar pessoas padecerem à míngua ou tomar conhecimento dos atos brutais de uma mulher? Assim, o filme se dedica muito mais ao primeiro, pela jornada de Karoline (Vic Carmen Sonne), repetidamente abandonada e batalhando sozinha para sobreviver, e o que está ao seu redor. Das casas precárias, os trabalhos que pagam pouco e as muitas mulheres que, assim como ela, precisam abrir mão da maternidade por falta de recursos. Não torna-se insensível ao choque final, quem assiste a essa construção, mas compreende-se o meio como fator fundamental da dinâmica, o horror, a falta, a sombra, como únicas alternativas de um mundo sem esperança e, portanto, em que a crueldade que se aplica a todos, diariamente, é a regra e pode eventualmente desenvolver violências individuais.
Embora tudo seja cinza, com contrastes fortes entre a escuridão e os pontos mais claros, fazendo com que os personagens pareçam quase iguais, numa lavagem sem vida, Karoline se destaca nas cenas, com sua expressão bem marcada e as sobrancelhas escuras. A câmera busca seu rosto nas multidões enquanto a narrativa segue encontrando barreiras em seu caminho. O quase conto de fadas é rapidamente rompido e a protagonista se move para fora dessa história com o mesmo rosto endurecido que carrega em tantos momentos. Mesmo que a possibilidade de uma vida melhor apareça em A Garota da Agulha, o longa jamais brinca de ludibriar quem o assiste, tanto sua atmosfera quanto seu texto indicam que a realidade não tem saídas fáceis, portanto acreditar que Karoline se casará com um homem rico e encontrará o amor é tão ingênuo quanto crer que bebês doados por mulheres na miséria terão a sorte de viver dias plenos em casas de médicos e advogados. O cineasta joga aqui com a capacidade humana de enganar a si mesmo em tempos de dificuldade, imaginar cenários que aliviem seus sentimentos de culpa, desamparo ou solidão, ainda que o que é real esteja obviamente escancarado. Assim, Dagmar (Trine Dyrholm) surge como um consolo agridoce, como são quase todos os encontros no filme, em que algo parece bom quando se ignoram todos os sinais alarmantes ao redor.
Este clima pós-primeira guerra mundial, de isolamento e desesperança, que aproveita justamente a estética do movimento Alemão da mesma época, alguns truques do primeiro cinema e até mesmo a existência dos shows de aberrações para ilustrar um microcosmos pautado na realidade, mas exibido de forma a destacar seu lado mais sombrio e triste, pode parecer uma exploração exagerada da estética da miséria. No entanto, a intenção de von Horn talvez seja, além de mergulhar nessa atmosfera soturna para impregnar a encenação com o sentimento e vivência de seus personagens, colocar em confronto o que provoca o choque. Por isso, a revelação dos atos criminosos de Dagmar é segurada até praticamente os momentos finais, embora fique muito claro que algo de muito errado acontece desde as primeiras interações entre as duas mulheres, e a indicação dos fatos reais é mais tardia ainda. A forma como isso é feito não torna o impacto maior ou menor, mas facilita a assimilação destes horrores como parte de algo muito maior. Um meio opressivo com as mulheres, em que sabe-se desde criança tudo de mais cruel (como representado por Erena), mas esmagador em geral com os seres humanos pobres e trabalhadores, desamparados em uma sociedade em que a vida praticamente não tem chances, não poderia produzir outra coisa além de mais dor, sofrimento e tristeza. É o que percebe-se logo, quando qualquer oportunidade de uma melhora nas condições de Karoline se viram contra ela mesma, ou no fato de seu marido retornar das trincheiras completamente desfigurado, fazendo com que seu rosto seja mais chocante para as pessoas do que a própria guerra.
Se para aquela população é mais fácil se indignar com Dagmar do que com o que leva tantas mulheres a desistirem de seus filhos, que talvez nem mesmo queriam mas são obrigadas a terem, é justamente o caminho oposto que o filme cria para quem o assiste, apresentando primeiro a dificuldade do meio para depois introduzir a dinâmica feminina entre o instinto materno e o assassino, a dualidade entre vida e morte centrada na mulher. Logo, este grande pesar que A Garota da Agulha carrega não permite respiros ou um horizonte de esperança para quem quer que seja, exceto por quando possibilita no encontro de Karoline e Erena uma nova narrativa a ser traçada.