|Crítica| 'A Filha do Palhaço' (2024) - Dir. Pedro Diógenes
Crítica por Raissa Ferreira.
'A Filha do Palhaço' / Embaúba Filmes
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Pedro Diógenes observa a complexidade de dois estranhos tão familiares se conhecendo pela primeira vez e aprendendo a construir um laço fora do tradicional
Assistir a Joana (Lis Sutter) entrando no lugar em que o pai (Démick Lopes) faz sua apresentação como Silvanelly é como a observar adentrando um novo mundo, de luzes e cores que ela desconhece, com a típica cara fechada que a adolescência nos reserva. Esse encontro distante que se aproxima aos poucos durante o longa, faz de A Filha do Palhaço um exercício que busca na construção do laço entre pai e filha um olhar pela perspectiva de quem errou e quem se feriu, no pequeno universo entre ambos que descarta os julgamentos externos, importa o que Joana sente e como Renato pode se redimir, como esses dois podem se conhecer 14 anos depois e aprenderem seus papéis, em uma paternidade fora dos moldes tradicionais. É a doçura e a sensibilidade da mise-en-scène de Pedro Diógenes que fecha o espectador nessa reconstrução afetiva e torna qualquer tentativa de romper a nova chance dos dois se conectarem, dolorosa. Todo o passado e os problemas que existiram, de um lado pelo abandono que Joana passou e, do outro, de toda uma nova vida que Renato encontrou ao descobrir melhor sua sexualidade e o amor, são digeridos pelo agora, da garota jovem que encara frontalmente o pai, sem medo de dizer o que gostaria de perguntar e do homem que, confrontado, é obrigado a descobrir como se encaixar nessa figura paterna, sem perder sua própria forma de viver. Assim, rancor e perdão cabem apenas a Joana, o espectador fica entregue a esse novo amor surgindo, construído a cada nova interação, segredo, medo e conflito, torcendo passivamente para que esses dois não se separem mais.
A figura de Silvanelly, inspirada em uma personagem importantíssima do humor cearense, coloca esse pai um tanto distante do imaginário esperado do homem que abandona a filha e a esposa para viver outra vida. A arte de rua é fundamental para elaborar esse fundo de Renato, que não tem nenhum luxo nem glamour, embora seja conhecido, seus shows ocorrem em restaurantes e bares, com poucas pessoas, se locomovendo em seu carro antigo e estocando perucas e maquiagens no pequeno apartamento de solteiro. A vida do artista é solitária, e parece combinar com a de Joana, em toda a construção do filme é possível os enxergar como dois tímidos isolados que aos poucos ganham espaço e permitem novas interações em seus mundos. A praia do futuro parece vazia enquanto apenas pai e filha dividem suas histórias, e conforme vão se aproximando, suas dores de amores passados e perdidos vão servindo de escada para entrarem no íntimo um do outro. É uma relação frágil, complicada pela dor de Joana, na difícil fase dos 14 anos, mas que vai sendo facilitada pela doçura com que Renato se acomoda devagarzinho ao seu lado, assumindo seus erros. Tão logo essa interação se inicia e o homem já sente os primeiros sintomas da paternidade, as preocupações se escalam e a notável falta de conhecimento de ambos sobre suas vidas e personalidades se torna um obstáculo a ser superado. Novamente, esse ponto de vista aplicado pelo longa torna mais importante o que tem a ser construído e aprendido, do que enfiar o dedo nas feridas e reclamar o que não se fez no passado. A Filha do Palhaço busca mais o perdão entre duas pessoas, colorindo em luzes neon, maquiagens, glitter e humor, uma dor que começa a se curar.
Renato passa a iniciar a filha na vida adulta, expande sua visão para outras formas de viver e se expressar artisticamente, os olhares para o horizonte constantemente presentes quando ambos conversam apontam que Joana ainda tem toda uma longa jornada pela frente e que talvez, 14 anos ausentes, sejam pouco perto de tanta vida a passarem juntos. Ao mesmo tempo, a filha tenta descobrir quem é esse homem por meio de seu passado, há mais interesse nela no que ele foi e como se transformou nesse pai de agora, observando com fascínio suas fotos, roupas e pertences. Assim como Silvanelly existe como ferramenta de Renato para ganhar a vida, com inspiração na relação com a filha, sua maquiagem se torna arma de desabafo e defender sua figura aperta os laços entre ambos. Diógenes não utiliza a personagem como mero acessório, ela é fundamental para compreender não apenas esse homem e seu entorno, mas como ponte entre ele e Joana e, também, uma redenção ao coração partido de Renato. A arte os une, principalmente pela belíssima troca com a música, em que toda saudade, afeto e todos os sentimentos que não puderam ser expressados facilmente em palavras, são trocados enquanto cantam e dançam juntos.
A falta que Joana fez sua vida toda, a ausência de Renato e a dor de imaginarem agora, com essa relação tão nova, se separarem novamente, é toda expressada pela música, ao mesmo tempo em que uma Silvanelly desanimada vê a luz que a ilumina retornar. Enquanto Diógenes nos fecha nesse pequeno universo mágico, é impossível pensar em rancor e se apegar às mazelas do passado - até a própria mãe, personagem que serve para lembrar disso tudo pontualmente, se rende à bela imagem de ambos unidos -, tudo que queremos é olhar para esses dois juntos, cantando a falta que sentem um do outro em meio a luzes coloridas e a esperança de um futuro com menos saudade.