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|Colunas| Coluna Coágulo #009 - Por Tati Regis: 'Pra quê essa trilha sonora? A música nos filmes de Argento'

|Colunas| Coluna Coágulo #009 - Por Tati Regis: 'Pra quê essa trilha sonora? A música nos filmes de Argento'

Tati Regis escreve mensalmente sobre o cinema de horror na coluna Coágulo.

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'Profondo Rosso' (1975), de Dario Srgento.

 

Pra quê essa trilha sonora? A música nos filmes de Argento.

Por Tati Regis.

Mais uma vez estou aqui falando de cinema italiano, já deu pra perceber que é um vício, né? E não tem muito como escapar, são filmes que costumam grudar na gente, às vezes pelo visual, às vezes pelo clima e às vezes pelo som. Os de Dario Argento costumam fazer as três coisas de uma vez: ficam na cabeça e ainda fazem barulho. Desta vez, o que me puxou de volta ao gênero, foi um comentário curto, mas muito curioso que li no Letterboxd sobre Prelúdio para Matar (Profondo Rosso, 1975): “pra quê essa trilha sonora?”. 

A pergunta me pegou de jeito e fiquei pensativa. Não só porque o filme é um dos meus favoritos do Argento, mas porque a crítica parecia um misto de espanto com desaprovação, embora sincera e, revelava algo fundamental sobre o cinema dele. Aquilo ficou na cabeça e, quando percebi, já estava pensando em Suspiria (1977),  A Mansão do Inferno (1980), Tenebre (1982), Phenomena (1985), Terror na Ópera (1987). E em como as músicas desses filmes parecem estar sempre em guerra, ou talvez em dança, com a imagem. Às vezes acompanham, às vezes empurram a cena ladeira abaixo, às vezes sozinhas já contam metade do pesadelo.

Argento parece ter compreendido, talvez melhor do que qualquer outro diretor de horror italiano, que a música não precisa seguir a cena. Sua parceria com o Goblin, iniciada em Profondo Rosso, redefine essa lógica, pois a trilha não serve apenas como fundo nem está lá só para marcar ritmo. Ela funciona como um motor, impulsionando a narrativa para dentro de um pesadelo de neon e sangue.

Um bom exemplo disso é a cena em que Marcus Daly (David Hemmings) entra naquela casa esquisita, atrás da tal “criança que grita”. A câmera vai acompanhando ele, tudo meio silencioso, meio tenso, até que do nada a música do Goblin entra com tudo. Uma batida estranha, estridente, que parece fora de lugar, mas que é justamente o que transforma a cena em algo marcante. Não tem diálogo, não tem efeito especial chamando atenção. Só a música, que toma conta do espaço e deixa tudo mais ameaçador. Ali, a trilha não está só fazendo fundo, ela vira quase um personagem. Parece que ela sente a cena antes da gente. Ela acelera o ritmo, dá o tom do medo, parece guiar o que a gente deveria estar sentindo. Em vez de seguir o silêncio da casa, ela quebra tudo, vira do avesso e faz aquele momento simples virar um dos mais emblemáticos do filme. O som carrega o impacto que a imagem, sozinha, talvez não desse conta.

O Goblin não fazia música de filme no sentido clássico. Era uma banda de rock progressivo com raízes na psicodelia e no jazz, claramente influenciada por King Crimson e Emerson, Lake & Palmer, mas com uma fissura permanente para o macabro. Quando entra em cena, a música do Goblin não se ambienta, ela confronta, desafia. Em Suspiria, por exemplo, o tema principal mistura caixinhas de música distorcidas, sussurros e explosões sonoras. A escola de balé vira cenário de ritual. É um feitiço sonoro que funciona como prenúncio e punição. Em Tenebre, há um lance mais seco, sintético, quase clínico. O mundo retratado no filme também é assim, mais asséptico, mais brutal. O sangue jorra mais como efeito estético do que por qualquer lógica narrativa. E a trilha reforça isso ao comandar o ritmo dos assassinatos e ao ditar o tom de cada corte. Os personagens são quase apagados, mas a trilha está lá para gritar por eles.

Escrevendo sobre o giallo, o pesquisador Mikel J.?Koven em seu livro La Dolce Morte: Vernacular Cinema and the Italian Giallo Film, destaca que muitos desses filmes são intensamente celebrados por suas qualidades visuais e sonoras, mesmo quando a narrativa é fraca. Ele afirma que: “A complexidade da narrativa do giallo, embora sempre presente, torna-se irrelevante. Ela vira uma estrutura tênue sobre a qual se penduram cenas de sexo gráfico e violência explícita”. Em sua visão, o giallo não exige que você goste do roteiro, mas que você se deixe levar pelas sequências visuais e sonoras que impactam pela composição, pelas cores, pelos cortes e, claro, pela trilha. A música e a imagem assumem o papel principal, criando uma experiência sensorial que muitas vezes supera o sentido literal da história. 

Em Phenomena, Argento leva esse jogo mais longe. A protagonista é uma garota com poderes psíquicos que se comunica com insetos. A trilha sonora acompanha esse delírio com faixas atmosféricas do Goblin, mas também com músicas de bandas como Iron Maiden e Motörhead. O filme pula da eletrônica soturna pro metal direto, criando um contraste tão estranho quanto envolvente. O resultado é uma experiência quase esquizofrênica, mas que combina com o tom de conto de fadas macabro que o filme propõe. Já em Terror na Ópera, o diretor junta música clássica e rock pesado na mesma sala. A história se passa num teatro de ópera, então árias de Bellini e Verdi convivem com faixas compostas por Claudio Simonetti, colaborador presente em vários filmes de Argento. Em certos momentos, a trilha abandona a elegância e mergulha num rock agressivo e eletrônico, com participação de músicos como Brian Eno e Bill Wyman. Os assassinatos são acompanhados por batidas pesadas, distorções e caos sonoro. É quase como se o som dissesse: o que você está vendo é arte, mas também é brutalidade.

E mesmo com tudo isso, a pergunta continua: pra quê essa trilha sonora? Talvez porque ela diga o que a imagem não consegue. Porque ela escancara o que o roteiro só insinua. Porque os personagens, muitas vezes passivos ou apáticos, precisam que a música sinta por eles. Ela antecipa o horror, ecoa a violência, seduz antes do golpe. E quando o golpe vem, é sinestesia pura. A câmera gira, o sangue salta, a trilha berra.

Não é à toa que Argento é comparado a Mario Bava pela paleta de cores. Mas talvez a comparação mais justa seja com compositores expressionistas. Ele dirige como quem monta uma partitura. E seus filmes parecem coreografados para uma trilha que já está tocando na cabeça dele muito antes da primeira cena. A influência disso é enorme. John Carpenter já falou que Argento e o Goblin foram inspiração direta para suas trilhas minimalistas. Edgar Wright, em Noite Passada em Soho (2021), também parece querer resgatar esse espírito da trilha como presença fantasmagórica. Até Stranger Things, com seus sintetizadores e seu clima oitentista, deve alguma coisa a esse cinema onde som e imagem andam em pé de igualdade.

A beleza do horror italiano dos anos 70 e 80 está justamente aí. Na recusa de ser discreto. Tudo é estilizado, exagerado, sensualizado. A trilha sonora faz parte desse pacto. E nos filmes de Argento, ela não só participa da cena. Ela invade. Toma o espaço. E muitas vezes é a verdadeira voz do filme.

O comentário sobre Profondo Rosso era uma provocação involuntária, mas certeira. Perguntar “pra quê essa trilha sonora?” é perguntar “pra quê esse cinema?”. Um cinema onde o estilo vem antes da lógica. Onde a sensação atropela o sentido. E onde a música, feita por gente que nunca quis ser coadjuvante, acaba nos conduzindo pelo labirinto do pesadelo. 

 

Referências:

https://collider.com/dario-argento-music-goblin/

https://variety.com/2023/film/features/claudio-simonetti-suspiria-deep-red-demons-goblin-1235758300/

https://pitchfork.com/news/massimo-morante-goblin-founder-and-guitarist-dead-at-70

La Dolce Morte: Vernacular Cinema and the Italian Giallo Film (Mikel J. Koven) 

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