|Crítica| 'Levados Pelas Marés' (2025) - Dir. Jia Zhangke
Crítica por Victor Russo.
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'Levados Pelas Marés' / Mostra SP
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Zhao Tao vira testemunha condutora de uma reflexão sobre as mudanças do espaço e das pessoas por meio do cinema autorreferente de Jia Zhangke
Diretores bons (e ruins) comumente chegam a um estágio de sua carreira e passam a sentir a necessidade de falar sobre o próprio cinema, fazendo-o a partir de um se colocar em cena e se autorreferenciar. Grandes diretores geralmente não precisam ser tão literais (não que seja impossível construir grandes obras por meio dessa revelação mais clara), entendem que a melhor forma de um cineasta comunicar é por meio do fazer cinema. Levados Pelas Marés parte de uma reflexão de Jia Zhangke nesse nível, trazendo Zhao Tao de volta para viver essa protagonista observadora, que não fala (a não ser por mensagens de celular), ainda que se comunique magistralmente pelo olhar e suas reações faciais e corporais (o que tem tudo a ver com um filme que tem como objetivo central a percepção das pessoas no espaço e as modificações dessa relação que pode ser enfrentada ao longo do tempo e por influências internas e externas), assim como retornando às suas obras anteriores, em tema e imagens, a fim de criar uma reflexão muito mais profunda do que apenas falar sobre si mesmo.
Poderia (e seria mais fácil) simplesmente abordar o longa a partir de uma perspectiva política e crítica de Jia em relação às mudanças enfrentadas pela China nessas mais de duas décadas, passando por um processo de abertura econômica, modernização, corrida tecnológica e precarização do trabalho, transformando-se na maior economia do mundo e referência global em diversas áreas. Por mais que isso esteja presente no longa, Jia parece muito mais interessado em refletir pela observação do que em cravar discursos de forma mais simplória. A história do casal e a busca da mulher abandonada pelo namorado que procura oportunidade indo para a grande cidade é apenas o ponto de partida, já que a narrativa se desenha para muito além deles, e essa premissa serve apenas para a mulher se colocar em movimento, para assim virar essa protagonista observadora.
Importa mais o fluxo de imagens e momentos, esse espaço em constante mudança, a vida dela em modificação sem realmente sair totalmente do lugar, a tecnologia primeiro como um sonho distante um tanto cômico até se transformar em uma realidade ainda bastante ambígua e indefinida. Zhao Tao atuar sem dizer faz todo o sentido, ela é um corpo naquele espaço, ela olha, quase nunca é vista de volta. Mais do que a personagem deste longa, a atriz funciona como essa fusão entre esta obra e toda a filmografia de Zhangke, da qual ela é bem presente. O cinema que olha para aqueles espaços e personagens ao longo do tempo vira um documento histórico de transição e reflexão, mas não necessariamente da sedimentação de ideias.
Levados Pelas Marés é passado, presente e futuro, é o cinema como a eternização do mundo a partir de imagens, sejam elas digitais ou película, quadradas ou mais horizontais, com resolução caseira ou super nítida e bem fotografada. A força aqui não está na determinação de uma coesão narrativa, mas na encenação do real, na figura de Zhao Tao como uma personagem ficcional que transborda o mundo e tempo vivido, uma inserção do cinema para a observação da realidade. Basta cada imagem se resolver em si mesma, cada espaço ter o seu potencial construtivo, seja para inserir pessoas nele ou trazer possivelmente algum sentido maior. Em um mundo ansiando por respostas, Zhangke prefere fazer da câmera e da montagem dessas imagens apenas uma configuração de um mundo em desenvolvimento, o que é fotografado e fica para sempre, rompendo a delimitação sempre ingênua entre a ficção e a realidade. A partir que a câmera capta, tudo é encenado, mas nem por isso deixa de ser um fragmento do real ou do agora.