|Crítica| 'Stella: Vítima e Culpada' (2025) - Dir. Kilian Riedhof
Crítica por Raissa Ferreira.
![]() |
'Stella: Vítima e Culpada' / Mares Filmes
|
A partir de uma história real, cinebiografia e drama histórico se unem sem muita inspiração em mais uma obra sobre a segunda guerra mundial, suas vítimas e algozes
A segunda guerra mundial nunca deixou de ser um tema popular no cinema. Ano após ano, diversas produções, de diversas origens, trabalham os horrores do holocausto ou os conflitos armados, alguns adentram o íntimo daqueles que sofreram, outros buscam investigar a mente maligna dos nazistas. De reimaginar a história a tentar digerir exatamente o que aconteceu naquele período, o cinema já fez de tudo, mas parece que a ideia de manter a memória viva segue mais forte do que a exaustão provocada por um sem-número de obras que carecem de originalidade e substância.
Stella: Vítima e Culpada não sofre apenas do mal de ser mais um filme que lamenta o genocídio de judeus sem muito a dizer além de se fundamentar no sofrimento de um povo e na exposição da violência, como também tem o azar de ser uma cinebiografia pouco inspirada. Stella Goldschlag, a mulher real que é recriada o filme, tem sua vida contada por Kilian Riedhof, diretor alemão, e mais dois roteiristas, cujo interesse parece ser tanto detalhar a trajetória da mulher quanto reviver os pesadelos da shoá. Assim, Paula Beer empresta seu talento para construir uma protagonista que é um tanto complexa, principalmente por como o longa decide estabelecer sua personalidade e ações.
Após uma introdução que atesta que Stella: Vítima e Culpada é fundamentado em documentos legais, a história de Stella inicia-se em 1940, quando a jovem ainda cantava jazz com seus amigos músicos e tentava fingir que as suásticas que encontrava por aí não a afetariam. Em dado momento, sua mãe diz na mesa de jantar que o patriarca da família é judeu, colocando “você é” e não “nós somos”, reforçando o sentimento da protagonista em relação a sua origem. Stella é retratada desde as primeiras cenas como alguém egoísta e mimada, que não se enxerga dentro do grupo a ser exterminado, mas superior a eles.
Ao longo do filme, diversas elipses vão atravessando anos e momentos, com fade outs constantes, o que muitas vezes interrompe acontecimentos ou deixa de os explorar para seguir em frente. Isso porque Riedhof quer passar pela vida de Stella, não só pelo ápice em que ela se torna uma delatora da Gestapo. Assim, vai costurando retalhos de sua trajetória em uma montagem esquisita de cada etapa de seu amadurecimento em conjunto com o avanço do nazismo na Alemanha. Garante, dessa forma, que a personagem tenha passado e futuro, contexto, não seja apresentada unilateralmente, mas com camadas. A jovem que achava que nada lhe aconteceria, logo é etiquetada como judia e enviada para trabalhos forçados, mas sempre busca maneiras de driblar o sistema e se misturar nas ruas. O longa tenta a mostrar não só como alguém de caráter no mínimo duvidoso, mas também charmosa e simpática. Seus momentos em casal com o falsificador de passaportes, por exemplo, lembram algo meio Bonnie e Clyde. Vê-se que não é de interesse de Riedhof retratar uma vilã, puramente, há na obra um apreço pela mulher, alguma empatia por sua condição.
É assim que unindo o pior das cinebiografias genéricas com o mais apelativo dos filmes de segunda guerra mundial, Stella: Vítima e Culpada convoca a condição humana de sua personagem ao deixar claro que ela é, ainda que não aceite bem, uma vítima do nazismo, explorando a violência aplicada em seu corpo. A escolha de apresentar cenas em que Paula Beer é repetidamente agredida por homens de farda é definitivamente tanto uma ferramenta que ajuda a construir a personagem como alguém não tão ruim assim, quanto a dose extra de crueldade que alguns usam para deixar claro os horrores apresentados, na falta de maior talento para operar uma narrativa.
É curioso perceber nestes momentos, assim como na escolha de retratar grandes partes da vida de Stella, não somente seu envolvimento cruel com o nazismo, e na opção de tremer a câmera frente a seu suicidio, como tudo parece traduzir algum sentimentalismo do diretor com a pessoa ali ilustrada. Claramente Stella é retratada como uma pessoa de moral muito questionável, egoísta e imatura, mas há também nuances que pedem que se olhe além dessas características para a ver como uma mulher constantemente usada (e violentada) por sua beleza e seu corpo, como uma judia vítima da shoá e como uma filha tentando salvar a si mesma e a seus pais, embora este último seja difícil de comprar.
Há na atuação de Beer mais investimento na complexidade de Stella do que na condução do filme como um todo. Seus olhos sempre mostram que aquela mulher só faz o que precisa para salvar a si mesma, mas existem escolhas narrativas que parecem ter medo de abraçar completamente essa ideia. Historicamente, há quem diga que Stella Goldschlag se tornou uma antissemita declarada, e definitivamente a construção da personagem passa por etapas que vão de encontro a essa informação. No entanto, é difícil dizer se Riedhof realmente enxerga na mulher, ou na personagem que criou com base nela, realmente uma dualidade, o lado vítima e o lado cruel, ou se há receio em colocar uma judia nessa posição puramente maligna.
Provavelmente existe aí, nessa questão, algo muito mais interessante. Porém, Stella: Vítima e Culpada opta por caminhos mais genéricos e seguros, de contar uma história longa de vida e de um momento marcante e terrível para a humanidade, com diversas elipses e passagens que desperdiçam as possibilidades mais instigantes e desafiadoras.