|Crítica| 'Ainda Não é Amanhã' (2025) - Dir. Milena Times
Critica por Raissa Ferreira.
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'Ainda Não é Amanhã' / Embaúba Filmes
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Milena Times elabora a história de sua personagem ao redor de uma pauta antiga que segue extremamente urgente
Em uma noite de festa, Janaína (Mayara Santos) se diverte com as amigas e o namorado. A introdução de Ainda Não É Amanhã é pulsante, mas a energia vista nessas primeiras cenas está longe de ser a atmosfera que o longa busca em sua totalidade. É o dia seguinte que determina o ritmo e a condução da obra, muito pautada na rotina das três mulheres negras que dividem a mesma casa, avó, mãe e neta, mas com principal foco na protagonista. A jovem de 18 anos é a primeira da família com a chance de conquistar um diploma universitário. Estudante de direito, bolsista e moradora de um conjunto habitacional na periferia de Recife, Janaína tem como principal objetivo se formar, voltando todas as horas de seu dia para o estudo e uma monitora que conseguiu na faculdade. Assim, uma gravidez inesperada é a última coisa que poderia acontecer.
Milena Times trabalha em sua personagem um perfil de mulher que é, dentro das estatísticas, um dos que mais possuem chances de sofrerem as complicações de um procedimento de aborto clandestino, desamparadas por um estado que limita as escolhas de uma mulher sobre seu próprio corpo. Para a diretora e roteirista, esse debate urgente há tantas décadas e a insatisfação com o sistema parecem tão alarmantes que soam como única motivação do longa. Primeiro procura-se falar do aborto, da falta de opção, da dificuldade em encontrar o medicamento correto e o desamparo da clandestinidade e, ao redor disso tudo, existe Janaína, construída para exemplificar esses pontos.
Singelo, Ainda Não É Amanhã destaca muito a rotina da casa de três mulheres que saem cedo e retornam ao final do dia para manterem suas vidas. Janaína é a perspectiva de futuro, por isso, tornar-se mãe aos 18 anos e abandonar o sonho do diploma é impensável. A gravidez não é retratada como um dano gigantesco por si só, mas a manter nesse momento, sem vontade, é um obstáculo bastante complexo. A jovem sofre com a barreira encontrada, ela precisa solucionar a situação, interromper a gestação para seguir em frente. Então o filme circula muitas vezes o mesmo local, pois para ele é mais importante esse registro quase informativo das problemáticas de um sistema que não só limita as escolhas e possibilidades de tantas mulheres, como também as coloca em sofrimento emocional e em grande risco.
É claro que enquanto prioriza suas questões e desenha a história de Janaína a partir disso, uma perspectiva minimamente íntima é estabelecida no processo. Ocorre que é visível uma dificuldade de mergulhar ainda mais na protagonista, sua mente e emocional - uma necessidade comum à proposta que define uma única personagem como condutora da narrativa -, por parecer que sua trajetória só existe para justificar a problemática de ainda hoje, em 2025, uma mulher não poder escolher se quer ser mãe ou o que quer para seu próprio corpo. Times realiza uma obra que dialoga com muitas, não apenas brasileiras, e uma dor constante com a crescente do conservadorismo, o retrocesso em direitos adquiridos e a dificuldade em avançar em pautas como a legalização do aborto em diversos pontos do mundo.
Ainda Não É Amanhã é muito sensível e cuidadoso com tudo que trabalha, assim como é com a jornada de Janaína, mas carece de maior aprofundamento no que torna a narrativa única, justamente sua protagonista. Times caminha por um lado mais didático, linearmente traçando a relação sexual, os sintomas, a descoberta da gravidez e cada novo passo, das dificuldades nos estudos pela saúde mental deteriorada com a situação, até uma milagrosa ajuda para conseguir o remédio necessário. A obra reforça sempre aquilo que defende, construindo uma rede de apoio afetiva e feminina para Janaína, reforçando a existência de cada mulher na história, enquanto os homens são pouco vistos ou necessários. Há também um esforço para evitar a tragédia, não é pelo sofrimento que Ainda Não É Amanhã vai educar sobre a importância do aborto legal e seguro, por isso a jovem mulher não chega perto de riscos à sua saúde, seu namorado a ajuda dentro da medida que o filme o permite aparecer e mesmo após um golpe, a solução chega com alguma facilidade.
A dor que Ainda Não É Amanhã explora é a angústia emocional, transformando o mundo ao redor de Janaína em um lugar claustrofóbico, inclusive tentando traduzir isso nas imagens. Esse sofrimento de não ter escolha, de se sentir obrigada a seguir com uma gestação não planejada, é uma dolorosa realidade que centenas de milhares de mulheres brasileiras enfrentam todos os anos e que o longa de Times busca retratar enquanto deixa claro que a ilegalidade não impede ninguém, apenas coloca as pessoas em sofrimento e perigo. É humano e sensível que a obra rejeite uma saída chocante, pois ainda que exista muita apreensão no processo, a atmosfera também transmite segurança. O respiro aliviado de Janaína é facilmente compreendido e a rotina tão fundamental ao filme pode ser retomada com um peso a menos. A potência de ser uma mulher negra indo contra todas as barreiras do sistema para garantir um futuro escolhido e melhor é o impacto final que Ainda Não É Amanhã garante acima de suas irregularidades, principalmente pela construção do desfecho e o arremate ao som de Elza Soares.