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|Colunas| Coluna Coágulo #008 - Por Tati Regis: 'Todas as cores de Sergio Martino'

|Colunas| Coluna Coágulo #008 - Por Tati Regis: 'Todas as cores de Sergio Martino'

Tati Regis escreve mensalmente sobre o cinema de horror na coluna Coágulo.

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'Todas as Cores do Medo' (1972), de Sergio Martino.

 

Todas as cores de Sergio Martino

Por: Tati Regis

Visitar, ou revisitar certos diretores é um daqueles prazeres discretos que o cinema de gênero oferece a quem gosta de se perder pelos cantos menos iluminados da filmografia mundial. Nos últimos dias, assisti em sequência a três filmes de Sergio Martino: Lâmina Assassina (1971), No Quarto Escuro de Satã (1972) e Todas as Cores do Medo (1972). A experiência foi como mergulhar num mesmo pesadelo estilizado, onde tudo, do desejo à ameaça, se desenrola atrás de uma cortina de veludo ou sob a névoa de traumas mal resolvidos. Há algo de muito particular na maneira como Martino constrói atmosferas: o erotismo nunca é apenas provocação, o medo raramente é só susto, e as mulheres que atravessam esses filmes não são enfeites narrativos, mas o próprio nervo exposto da trama. Ver esses três longas em sequência me despertou uma vontade urgente de escrever, não só sobre Martino, mas sobre aquilo que vibra sob a superfície desses filmes, ou seja, uma inquietação constante entre o belo e o ameaçador, que ainda hoje consegue nos desestabilizar.

Há diretores que se especializam em gêneros. Sergio Martino, por outro lado, parece ter se especializado em flertar com todos eles. Seu nome pode não estar no panteão popular como o de um Dario Argento ou um Mario Bava, mas para quem mergulha no cinema italiano de gênero dos anos 70, Martino é uma figura conhecida e surpreendentemente versátil. Seu filme mais lembrado talvez seja Torso (1973), um proto-slasher brutal que antecipou várias convenções do subgênero americano, mas sua filmografia vai muito além disso. Ele entregou obras que transitam do giallo elegante ao horror psicodélico, do thriller erótico aos filmes de canibais e criaturas monstruosas, sempre com uma mão firme para o entretenimento e um olhar afiado para os desejos (e neuroses) de seu tempo.

A Itália dos anos 70 vivia um momento de efervescência e instabilidade, turbulência política, movimentos sociais em ebulição, violência urbana e uma indústria cinematográfica que, com a decadência dos grandes estúdios, se reinventava em produções rápidas, baratas e cheias de personalidade. O público queria emoção, sangue, nudez, paranoia e Martino entregava tudo isso com um senso estético mais apurado que muitos de seus contemporâneos. Era um artesão eficiente, sim, mas também um cronista sutil das ansiedades da época. E nenhuma dessas ansiedades era mais presente e mais explorada do que aquela que envolvia o corpo e a mente da mulher.

Não é exagero dizer que o feminino é o centro gravitacional de seus filmes. No entanto, ele não está ali para celebrar o empoderamento (isso seria pedir demais de um giallo dos anos 70), o que há é um corpo feminino permanentemente ameaçado, espiado, desejado, manipulado, mas também misterioso, perigoso e resistente. E poucas atrizes encarnaram esse paradoxo com tanto carisma quanto Edwige Fenech, musa recorrente do diretor, que transitava com naturalidade entre o glamour e o pânico, entre o erotismo e a vulnerabilidade.

Tomemos Lâmina Assassina (1971) ou O Estranho Vício da Senhora Wardh (gosto mais desse título) como ponto de partida. Aqui, Martino nos apresenta uma protagonista mergulhada numa espiral de desejo e medo, cercada por homens que a desejam, a controlam ou a perseguem e, às vezes, tudo isso ao mesmo tempo. Há uma ex-namorada com tendências sadomasoquistas (nada discretas), um marido politicamente conveniente, um amante sedutor e, claro, um assassino à solta. O roteiro é intrincado, cheio de pistas falsas e reviravoltas, mas o que realmente importa é como o diretor nos conduz por um labirinto psicológico e sensual onde a dor e o prazer caminham lado a lado. Tudo isso com uma elegância que quase nos faz esquecer que estamos vendo um filme sobre assassinatos com navalha. No ano seguinte, Martino radicaliza a experiência com Todas as Cores do Medo (1972), uma espécie de delírio satânico vestido de thriller. Aqui, o horror se infiltra pela via da paranoia e das seitas secretas, num clima que lembra O Bebê de Rosemary (1968) batido com LSD. Fenech vive uma mulher emocionalmente abalada, que passa a ter visões perturbadoras e a se envolver com um grupo ocultista, onde sexo ritualístico e alucinações se misturam. Martino brinca com o que é sonho, o que é realidade, mas principalmente com a instabilidade da percepção, tanto da protagonista quanto da nossa. A mulher aqui não é só desejada e perseguida, ela é uma mente fragmentada num mundo onde todos parecem saber mais do que ela. Ou fingem saber.

Mas nem só de delírio vive o medo. Em Torso (1973), Martino pisa com um pé firme no terreno do slasher. Antes de Michael Myers vestir sua máscara ou Jason brandir seu facão, já havia um assassino mascarado espreitando universitárias numa vila isolada. Torso é menos psicodélico e mais direto. Corpos nus, violência gráfica e uma atmosfera de morte iminente. Aqui, a câmera é abertamente voyeurística, mas há um detalhe importante: quando o jogo vira e a protagonista precisa sobreviver, Martino não hesita em inverter posições. A tensão final, construída em silêncio quase absoluto, é um dos momentos mais eficazes do cinema de horror europeu da década. E sim, o corpo feminino ainda está no centro, mas agora também como corpo em resistência.

Como aponta Mikel J. Koven no livro La Dolce Morte: Vernacular Cinema and the Italian Giallo Film (2006), o giallo é menos sobre a lógica da narrativa policial tradicional e mais sobre um jogo de estilo, de repetição e reconhecimento. Ele vê esses filmes como uma forma de cinema vernacular, onde o prazer está menos na resolução do mistério e mais no modo como os elementos familiares (o assassino de luvas pretas, a vítima indefesa, a trilha sonora pulsante e os delírios visuais), são apresentados ao público. Sergio Martino entendia isso instintivamente. Seus filmes jogam com essas convenções não para quebrá-las, mas para extrair delas o máximo de efeito, de susto, de desejo, de tensão. É um cinema que sabe ser fórmula e, ao mesmo tempo, se permite inventar dentro dela. Talvez por isso, hoje, num cenário em que tantos cineastas contemporâneos, de Peter Strickland a Jennifer Reeder, de Bruno Forzani e Hélène Cattet a até certos momentos de Ti West, revisitarem estéticas e códigos do passado, o cinema de Martino soe tão vivo. A mesma vibração estilizada ecoa também em autores como Anna Biller, Bertrand Mandico ou o promissor Calebe Lopes, todos atentos a esse limiar entre beleza, subversão, perversão e encenação que fez do cinema de gênero europeu algo tão estranho quanto fascinante.

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