|Crítica| 'Em Rumo a Uma Terra Desconhecida' (2025) - Dir. Mahdi Fleifel
Crítica por Raissa Ferreira.
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'Em Rumo a Uma Terra Desconhecida'/ Imovision
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Mahdi Fleifel concentra seu longa em dois protagonistas para explorar a tragédia dos refugiados em um limbo geográfico, dispostos a tudo pelo sonho de uma vida melhor na Europa
São as ruas que definem a mise en scène de Em Rumo a Uma Terra Desconhecida logo de cara, jogando seus protagonistas Chatila (Mahmood Bakri) e Reda (Aram Sabbah) no cenário urbano dinâmico e cinza de Atenas. A acrópole, e tudo de mais bonito que se imagina do local, nunca é vista nas cenas, um dos personagens fala sobre o monumento como parte fixa da paisagem, mas essa nunca é captada pelas câmeras do longa, que transforma a capital grega em um cenário qualquer. Os primos palestinos, que saíram de um acampamento no Líbano e tentam se deslocar pela Europa para fixar residência na Alemanha, descrevem a Grécia como um lugar “não-europeu”, em que os habitantes são mais como eles. O paralelo com os árabes feito pelos próprios personagens implica nessa visão de superioridade da civilização de certos países, o sonho europeu que tantos refugiados e imigrantes carregam, determinando caminhos tortuosos e perigosos para chegarem nesse lugar em que suas vidas terão chances melhores, ao que pensam.
Chatila e Reda são homens sem lugar, enxergam Gaza ou o Líbano como limbos de passagem, não possuem mais origem, apenas destino. Com a dificuldade de viver na Palestina, se deslocam, mas só encontram mais dificuldade em cada novo ponto. Reda carrega em si o território tatuado no peito e no idioma, na pele, em todas as características, os dois primos sempre serão árabes em outras terras. No entanto, se tornam obstinados com a oportunidade de construir nova vida em um lugar desconhecido, um sonho abstrato de começar um restaurante palestino em um bairro árabe da Alemanha. Enquanto usam Atenas como um aeroporto urbano, um não-lugar de passagem, os dois só conseguem fazer dinheiro de formas ilegais, roubando pessoas, lojas, pela prostituição em parques ou enganando os outros.
O cineasta palestino-dinamarquês Mahdi Fleifel, já abre seu longa situando seus personagens nessa ideia de sujeira e criminalidade, antes mesmo que se compreenda em que lugar do mundo estão. A partir daí, Chatila e Reda passam a empurrar os limites para conseguirem o que precisam. Um homem em Atenas vende passaportes falsos a refugiados que buscam entrar por meio tradicionais em outros países da Europa. Para chegar de avião na Alemanha, os primos precisam juntar os euros necessários e pagar os documentos fabricados. O problema é que eles só conseguem dinheiro por meios ilegais, e que Reda possui um vício em drogas que constantemente coloca a dupla na estaca zero.
Quando conhecem um menino palestino que precisa de ajuda para chegar na Itália, onde uma tia o aguarda e está disposta a pagar pelo serviço, suas morais são novamente desafiadas. Em Rumo a Uma Terra Desconhecida é uma constante de encontrar limites éticos e de caráter e jogar seus personagens na única possibilidade de os romper. No cenário urbano pouco convidativo, sempre nessa condição de posto de passagem, temporário, Chatila serve como a mente da dupla, que arquiteta os planos e resolve os problemas, enquanto Reda é mais passional. Assim, é o primo que pensa mais friamente, com mulher e filho esperando em um acampamento, que vê as oportunidades de trambiques em cada situação.
Chatila vê uma forma de conseguir o dinheiro que ambos precisam na viagem do menino para a Itália e, quando isso dá errado, como tudo costuma dar para os dois, ele passa dias buscando outra solução. Nessa espiral do longa, a próxima decisão sempre será mais radical que a anterior, e de se unir a uma mulher grega para levar uma criança palestina de forma ilegal a outro país, os primos passam a enganar e sequestrar outros refugiados árabes. Nesse ponto, a ruptura com os limites morais parece atingir um nível sem retorno, o que antes eram pequenos roubos e outros crimes nas ruas, encontra homens desesperados que traem seus iguais. Os três sírios que tentam chegar na Itália, com a mentira de Chatila e Reda, são pessoas como eles, em busca do sonho de uma vida melhor, com filhos e famílias dependendo deles. Mas, Em Rumo a Uma Terra Desconhecida dosa a urgência e a aflição de seus personagens, concentrando principalmente em Chatila a angústia, de forma que suas atitudes absurdas pareçam a única saída.
Como o longa parte já de Atenas e nunca consegue se mover para fora daquele cenário, a pobreza e o não pertencimento tornam-se os maiores motivadores dos protagonistas, e o espaço se apresenta como uma terra sem lei, sem crítica ao contexto, apenas observação da tragédia do momento. As ligações com as origens e com os destinos finais dos primos ficam embaçadas, como se o espírito da obra fosse essa sina de jamais encontrar seu lugar, jamais pertencer a uma terra novamente. No entanto, ao apresentar o sonho europeu, da vida prometida na Alemanha, como única resposta, casa-se muito com a ideia de uma civilização superior sem tentar a romper. A jornada de Chatila e Reda parece ruir por suas próprias ações, por seu desespero que rompe com suas morais, não pela promessa inalcançável ser, de fato, apenas um sonho fabricado, algo que tantos refugiados e imigrantes descobrem ser, em suas chegadas, impossível.
De certa forma, Em Rumo a Uma Terra Desconhecida é parecido com outros filmes que falam do mesmo tema, e o uso de personagens palestinos, e dessa perspectiva do diretor, não acrescenta algo diferente. A Europa, ou seus países mais ricos, ainda parece a solução, o problema é que Chatila e Reda estão fadados a se perderem nessa busca e não encontrarem seu lugar.