|Crítica| 'Lispectorante' (2025) - Dir. Renata Pinheiro
Crítica por Raissa Ferreira.
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'Lispectorante' / Embaúba Filmes
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Confuso e frágil, longa de Renata Pinheiro explora a alma da artista em conflito com as amarras do mundo careta
Em uma Recife cheia de história e vida, mas também abandonada e com seu passado rico desconhecido por muitos, Glória Hartman (Marcélia Cartaxo) chega após uma separação e em crise consigo mesma, com sua produção artística e rentabilidade financeira. Nas andanças pela cidade, ela encontra um artista de rua, por quem se apaixona, um guia turístico que aponta o vínculo das construções e ruas com a grande escritora Clarice Lispector e até lembranças de passagens de Carmen Miranda por ali. Glória visita hotéis antigos, prédios em ruínas, a terra da desconstrução em meio ao cenário urbano, tem visões de um futuro distópico em que a informação do passado é a maior riqueza, perde uma tia pela covid, entra em uma disputa judicial por uma casa que nem sabia que tinha direito, atravessa uma crise profissional e muitas outras coisas. A vida da mulher madura em transição é retratada por Renata Pinheiro com escolhas de planos um tanto amadoras, em um roteiro desorganizado e ingênuo, que até encontra imagens bonitas para estabelecer sua relação com a criatividade e a arte, mas se perde em suas próprias ideias e na falta de foco.
Nenhuma obra de Clarice Lispector inspira especificamente Lispectorante, embora a escolha de Marcélia Cartaxo venha de A Hora da Estrela e o nome da personagem principal de Paixão Segundo G.H, o universo artístico rico de Recife parece ser mais importante ao longa do que necessariamente a autora. Até por isso, Glória tem uma viagem mental visitando um quarto em que Carmen Miranda já esteve, buscando se conectar a tudo que já respirou por aqueles prédios de forma criativa. Não é apenas Clarice que chama sua atenção, mas o conjunto sensorial de sua obra de alguma forma, sim. O título do filme é também o nome da banda do novo namorado da protagonista, que vaga pelas ruas, sem destino certo no Brasil, com um grupo de artistas. Glória se encontra neles, pois qualquer vínculo mais careta com a realidade a dá desespero, como o emprego formal em uma loja de festas, com uniforme e tudo, acaba por a sufocar.
Essa mulher cheia de arte em si, delírios e sonhos, é confrontada pelas burocracias da vida, como um coming of age tardio. A herança da casa, a falta de grana que a leva a vender objetos e buscar alguma renda mais certa, a briga judicial com o primo, tudo vai se amontoando em cima da personagem que só quer, na verdade, viver livremente pelas ruas. Quando Lispectorante inicia, Glória diz que não faz mais arte e, de fato, mesmo em seus melhores momentos no filme, a mulher não é vista criando nada além de um coelho de isopor para tentar vender. Na maior parte do tempo, ela está em crise com essa vocação ou idealizando sua própria imaginação, em cenas oníricas que dão algum fôlego ao filme.
Pinheiro e Sérgio Oliveira assinam um roteiro confuso, ingênuo e sem objetivo, que tem dificuldade para ser traduzido em tela. Embora exista uma vontade de criar e brincar com as imagens, Lispectorante ainda fica perdido em muitos caminhos que não se conversam e, quando precisa ser um pouco mais sério, é amador em como apresenta suas cenas. Cartaxo é sempre ótima, mas sua relação com o artesão nômade, que teria algo bastante interessante principalmente ao explorar a liberdade de representar a sexualidade da mulher madura, soa totalmente desconectada e falha. Não é possível sentir paixão, mistério, desejo ou qualquer coisa que seja. Na verdade, todas as relações ao redor de Glória são precárias em como são escritas e apresentadas.
O exercício criativo que Pinheiro propõe carece de liberdade da própria autora, pois seu comprometimento com diversos temas e com seu roteiro carregado de tantas informações e caminhos, sempre puxa para a racionalidade algo que talvez deveria estar voando sem amarras narrativas. Se Glória sente angústia ao vestir um uniforme, o mesmo acontece a Lispectorante quando dá espaço a tantos diálogos capengas em plano e contraplano, sendo que seus melhores momentos possuem Cartaxo simplesmente misturando-se às cores de uma cena onírica ou Grace Passô vendendo contrabandos do passado em uma banca de jornal do futuro.