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|Colunas| Coluna Coágulo #007 - Por Tati Regis: 'Evangelizar pelo Medo: Horror Religioso no Cinema Negro'

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Tati Regis escreve mensalmente sobre o cinema de horror na coluna Coágulo.

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'Hell-Bound Train', de Eloyce e James Gist.

 

Evangelizar pelo Medo: Horror Religioso no Cinema Negro

Por Tati Regis

São curiosas as conexões que fazemos quando assistimos a determinadas obras. Digo isso pois aconteceu recentemente ao assistir o filme de horror religioso nigeriano End of the Wicked (acho que não tem tradução aqui), de 1999. Não sabia qual era o mote, mas me interessei em ver ao ler no enunciado “filme de terror nigeriano” e está disponível em um desses drives salvadores da pátria. A cópia não é lá, digamos, um primor de qualidade, mas isso se torna irrelevante quando se parte de um certo interesse de pesquisa. Quem estuda ou escreve sobre cinema aprende, cedo ou tarde, a ignorar essas imperfeições técnicas em busca do que realmente está vibrando ali. Logo nas primeiras cenas, enquanto a narrativa apresentava crianças-bruxas, rituais demoníacos e castigos divinos, me peguei lembrando de outro tipo de cinema: os filmes evangelizadores norte-americanos do início do século XX, como Hellbound Train (1930, Eloyce Gist, James Gist) e The Blood of Jesus (1941, Spencer Williams). Produções separadas por décadas, oceanos e contextos sociais completamente distintos, mas que compartilham algo essencial, como o uso do horror como ferramenta de salvação, linguagem moral e como forma simbólica de enfrentamento do mal.

A partir de contextos marcados por tensões raciais, espirituais e sociais, essas obras revelam uma linha comum: o cinema como instrumento de instrução moral, evangelização e controle comunitário. Esses filmes não apenas compartilham a estética do horror, do surrealismo ou do melodrama como meios expressivos, mas também uma intenção clara de moldar consciências dentro de suas comunidades.

End of the Wicked, dirigido por Teco Benson e escrito por Helen Ukpabio, foi produzido pela Liberty Films, ligada ao Liberty Evangelical Ministry, o ministério liderado pela própria Ukpabio, conhecida por sua postura controversa em relação à bruxaria e amplamente acusada de causar assédio e violência em larga escala contra crianças acusadas de bruxaria. O filme apresenta uma narrativa centrada em uma família perseguida por forças demoníacas e espirituais, encenando um conflito entre o cristianismo evangélico e práticas tradicionais, muitas vezes demonizadas. Nos chamados race films, o cinema surge como um espaço de afirmação espiritual diante de um mundo segregado, um palco onde a salvação da alma negra se torna também um ato político. Da mesma forma, End of the Wicked insere-se no contexto nigeriano como um reflexo das ansiedades pós-coloniais, misturando feitiçaria, pânico moral e evangelismo num espetáculo didático e aterrorizante.

Essa pedagogia do medo tem raízes mais profundas. O cinema religioso negro, desde seus primórdios nos Estados Unidos, herdou a função didática e moralizante que já estava presente nos púlpitos e nos corais das igrejas. Filmes como o do casal Gist, encenavam o pecado como espetáculo e a redenção como clímax, reproduzindo visualmente os ciclos do avivamento cristão. A linguagem do horror servia como instrumento para dramatizar as consequências da tentação, do vício, da transgressão. Era uma forma de tornar visível o invisível, os perigos da alma, os demônios cotidianos e, assim, promover uma pedagogia comunitária, acessível e emocionalmente intensa.

Esse uso do grotesco como alerta moral não se limita à história, mas estrutura toda a disposição cênica. A estética do medo, com suas figuras demoníacas, gritos sobrenaturais e punições exemplares, atua como um sermão encenado. Se o diabo aparece, é porque precisa ser vencido diante dos olhos da comunidade. O horror, nesse contexto, não é uma catarse abstrata, mas um rito de reafirmação. O corpo possuído, o grito de exorcismo, a danação visualizada, tudo isso funciona como espetáculo doutrinário, uma performance coletiva que reforça os limites entre o salvo e o perdido. Ao mesmo tempo, essas representações também projetam disputas mais profundas de imaginário. A figura da bruxa, por exemplo, presente em End of the Wicked e em tantas outras produções africanas, carrega em si os traços de um conflito entre modernidade cristã e ancestralidade africana. A bruxaria é, frequentemente, a encarnação do outro, seja ele a mulher rebelde, a criança indomável, o curandeiro tradicional. O horror religioso, assim, não apenas ensina, ele também expulsa, condena e regula. Demonizar práticas religiosas africanas tradicionais é uma forma de reafirmar o domínio de um cristianismo missionário que ainda ecoa o projeto colonial. O medo, nesse caso, serve tanto à fé quanto ao poder.

No cinema contemporâneo, esse legado ressurge sob novas chaves. Em Eu Não Sou uma Bruxa (2017), Rungano Nyoni transforma a acusação de bruxaria em crítica social, questionando o uso do medo como ferramenta de exclusão. Já filmes como O Que Ficou Para Trás (2020, Remi Weekes) ou A Lenda de Candyman (2021, Nia DaCosta) dialogam com essa tradição do horror negro, mas deslocam seu foco da salvação para a sobrevivência em meio a traumas históricos. Neles, o horror já não é um instrumento de doutrinação, mas um espelho político, uma forma de encarar o passado e o presente com olhos abertos. O medo não converte, ele denuncia.

Como aponta Robin R. Means Coleman em Horror Noire, o horror negro é também uma forma de reimaginar o espaço da negritude dentro do gênero, saindo da marginalização e entrando em cena como força crítica, espiritual e política. Pensando nisso tudo, não pude deixar de lembrar do atravessamento que Pecadores me causou. Porque ele parece dialogar diretamente com essa herança do horror espiritual negro, mas o faz com outra intenção, com outra energia. Ao trabalhar o vampirismo como metáfora para o roubo da vitalidade negra e evocar o blues como ritual de poder, o filme transforma a espiritualidade em campo de disputa. Nele, o horror religioso não serve mais à pedagogia do pecado, mas ao resgate de uma ancestralidade ferida. A fé não é imposição, mas conexão com uma dimensão mística que sobrevive ao colonialismo e à violência histórica.

 

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