|Crítica| 'Cidade dos Sonhos' (2001) - Dir. David Lynch
Crítica por Victor Russo.
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'Cidade dos Sonhos' / Retrato Filmes
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A desilução trágica hollywoodiana a partir da femme fatale projetada e do duplo feminino lynchiano
Cidade dos Sonhos, um dos filmes mais aclamados da cinefilia, chega aos cinemas brasileiros restaurado em 4K. A oportunidade de vê-lo pela primeira vez, pela primeira vez no cinema ou pela primeira vez com essa qualidade de imagem é um tanto tentadora por si só, mas pode ter um efeito ainda mais interessante, o de reacender debates sobre um dos filmes mais estudados e “explicados” da história. Só que antes de adentrar a obra-prima de David Lynch, vale dar alguns passos atrás e retornar para o início de sua carreira, como uma forma de entender a gênese do cinema lynchiano, sua relação com Hollywood e como isso viria a afetar duas décadas depois o seu longa mais celebrado.
David Lynch começa a dirigir longas no final dos anos 1970, chega tarde para fazer parte do clubinho de diretores cinéfilos da Nova Hollywood (Lynch, inclusive, não se dizia um cinéfilo na época, até começar a faculdade tinha visto poucos filmes e tinha mais proximidade com outras artes, como a pintura e as artes plásticas), apesar de seu cinema autoral conversar com o movimento e seu primeiro longa-metragem (após muitos curtas experimentais), Eraserhead, ser bastante celebrado por grandes nomes daquele momento, inclusive encantando tanto Mel Brooks que esse viria a apadrinhar e produzir obras posteriores do então jovem cineasta. Estranho, opressivo, experimental e, certamente, cheio de personalidade, o longa de 1977 causou um efeito inesperado, saindo de um lugar de desconhecimento e baixíssimo orçamento para se tornar cultuado pela cinefilia da época, sobretudo com muitas exibições em sessões da meia-noite, muito comum nos Estados Unidos para filmes de terror.
Três anos se passaram e Lynch retornou com O Homem Elefante, muito carregado de suas características visuais expressionistas e a importância corporal do seu cinema, mas também o longa mais tradicional de sua filmografia, uma espécie de romance vitoriano que lhe rendeu o maior número de indicações ao Oscar na carreira, incluindo Melhor Filme e Diretor. O sucesso estrondoso do longa fez com que o diretor fosse visto como uma revelação e rapidamente integrado à lógica dos estúdios, sendo escolhido para dirigir Duna, em contrato assinado com Dino De Laurentiis, que ainda contava com uma sequência no universo dos livros de Frank Herbert (os quais Lynch desconhecia, mas ao lê-los se encantou), e um terceiro filme fora da franquia. É aí que surge a grande desilusão lynchiana para com os estúdios, tema central de Cidade dos Sonhos. A produção foi tão conturbada e Lynch tão impedido de imprimir suas ideias, que ele se recusou a assinar a chamada “versão do diretor”, além do fracasso comercial da obra implodir a expectativa de uma sequência. Entretanto, o terceiro filme do contrato seguiu nos planos e, após dois anos, em 1986, De Laurentiis produziria, agora com uma proposta de redução de custos e uma produção um tanto barata, uma das grandes obras do diretor: Veludo Azul.
Este é o momento de ruptura na carreira do cineasta, o filme que definiu e afinou o estilo narrativo de Lynch, assim como introduziu características marcantes em abordagem de gêneros, como o noir, o horror macabro e a sátira, tudo a partir da combinação entre personagens estranhos e uma atmosfera desconfortável de sonho que rompe a barreira entre o mundo real e um submundo que parece se desenhar escondido dos olhos da sociedade (no longa, Lynch inclusive desce da grama verde para debaixo da terra, mostrando as formigas devorando um inseto, para representar esses mundos coexistindo, mas só um aparente). Todavia também é em Veludo Azul que Lynch define seu prazer pelo duplo feminino (uma influência de Alfred Hitchcock), que estará presente em quase toda a sua filmografia, com a femme fatale (tropo narrativo típico do noir) sendo uma mulher muitas vezes morena (no noir, historicamente a predominância é por loiras nessa posição), sensual e parte desse mundo obscuro, interpretada aqui por Isabella Rossellini, e a outra loira, a representação da pureza angelical, ainda que não sem desejos e atitudes contradizentes a esse estereótipo, nesse caso, com uma muito jovem Laura Dern.
Ao mesmo tempo, Veludo Azul traz consigo em seu subtexto justamente essa provocação ao sistema de estúdios, com um protagonista jovem (Kyle MacLachlan) e inocente (representação do diretor) sendo jogado em um mundo de pessoas sujas e esquisitas que tentam metaforicamente devorá-lo (os produtores e estúdios), até que, ao final, como o pássaro do longa, ele consegue domar aquele universo e seus predadores, mesmo que esses não deixem de existir. Seria então o longa em que o diretor não só solidifica o seu estilo, mas também encontra seu lugar nessa indústria, um tanto à margem, mas ainda parte dela, podendo assim produzir seus filmes com orçamentos enxutos e muita personalidade.
Cidade dos Sonhos revisita todos esses elementos lynchianos de uma maneira um tanto mais frontal, sobretudo em sua ridicularização e perversidade na representação desses agentes masculinos da indústria (não só produtores, como diretores e atores das antigas). É curioso inclusive que esse longa (em grande medida por conta de sua popularidade, com indicação ao Oscar de direção em um período que os fóruns de internet começavam a surgir) seja o que mais gere dúvidas e possíveis explicações nas redes até hoje, visto que tantas obras anteriores, como A Estrada Perdida, são muito mais abertas e oníricas em suas abordagens, enquanto Cidade dos Sonhos em nada floreia sua crítica à Hollywood e ainda retrocede na narrativa para mostrar uma suposta verdade por trás de todo aquele véu artificial que vimos durante as duas primeiras metades.
Apesar de ser sempre uma bobagem tentar definir explicações únicas sobre os filmes, por limitar a obra ao entendimento (e a apenas uma possibilidade de compreendê-la), ignorando tudo que ela provoca sensorialmente (inclusive, Lynch nunca dava respostas explicando seus filmes e era completamente oposto a isso), mas, nesse caso, há uma percepção que talvez potencialize toda a abordagem formal e temática. Duas cenas servem como ponto de partida. A primeira é a icônica da boate Silêncio, em que Rita/Camilla (Laura Harring) usa uma peruca loira e fica extremamente parecida com Betty/Diane (Naomi Watts), cena essa que marca a transição entre a primeira e a segunda parte do longa. A segunda pode passar muito mais despercebida, trata-se de Betty/Diane se masturbando, supostamente ao ser rejeitada pela amada. Ou seja, Rita, Camila, Betty e Diane seriam na verdade a mesma pessoa, uma das possíveis respostas que passa longe de ser uma novidade, inclusive é uma das razões para Persona ser tão apontado como uma das principais referências do longa.
Eis que entramos no objeto de interesse muito maior, como Lynch constrói essa encenação super sensorial a partir de um trabalho de gênero e tropos tradicionais ao seu cinema. O duplo feminino agora conduz a narrativa, e não mais é observado por um personagem masculino. Sem a dependência desse personagem masculino, que aparecerá como conflito na figura de Adam (Justin Theroux), essas duas mulheres podem se relacionar, sexualmente inclusive, criando um jogo em que a investigadora noir (papel adotado inicialmente por Betty/Diane, já que é ela quem sempre move a trama querendo investigar e saber mais) e a femme fatale (Rita/Camilla, não só por já participar daquele submundo lynchiano e envolver a amada em problemas, mas por, inclusive, ao final, ser vista como uma vilã aos olhos de uma “desperta” Betty, que agora é Diane) são agora a mesma pessoa.
Lynch se usa então da narrativa dos filmes Noir e da sua obsessão por duplos (a estrutura do longa em si faz com que todos os personagens e eventos sejam duplicados de maneiras distintas), para encarar pelos olhos da protagonista a desilusão trágica, essa representação de Hollywood como um moedor de carne, um espaço metafísico de destruir mulheres e sonhos, um mundo masculino que faz essas jovens, como Betty, descobrirem a verdade e mesmo assim não aceitá-la. Rita/Camilla assume esse papel da projeção, o amor (sonho) e traição (desilusão). Mas, no fim, existe apenas uma só, as duas chegam juntas à “cidade dos sonhos”, Betty cheia de expectativas, com brilho no olhar, enquanto Rita tenta se esconder entendendo uma maldição intrínseca àquele lugar.
Betty/Diane/Rita/Camilla são Norma Desmond (Gloria Swanson em Crepúsculo dos Deuses, referência mais direta do longa, o que faz ainda mais sentido com os nomes originais - Sunset Boulevard, o longa de Billy Wilder, e Mulholland Drive, o de Lynch - duas ruas icônicas em Los Angeles), a mulher quebrada pela indústria que segue desesperadamente acreditando nos seus sonhos, mesmo sabendo que, na realidade, ele é um pesadelo farsesco. Isso fica perceptível em como Lynch encena essa segunda metade, como um pesadelo, com os corredores da casa e os travellings por ele criando assombro, os velhinhos assustadores em miniatura e a escuridão que toma conta. A impossibilidade de Diane aceitar a desilusão faz com que ela mate o seu duplo, assassinando assim a si mesma. A desilusão trágica tem um fim e a cidade dos sonhos continua ali vendendo suas belas mentiras e escondendo suas entranhas amaldiçoadas.