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|Crítica| 'Pecadores' (2025) - Dir. Ryan Coogler

|Crítica| 'Pecadores' (2025) - Dir. Ryan Coogler

Crítica por Victor Russo.

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'Pecadores' / Warner Bros. Pictures

 

Título Original: Sinners (EUA)
Ano: 2025
Diretor: Ryan Coogler
Elenco: Michael B. Jordan, Hailee Steinfeld, Jack O'Connell, Jayme Lawson, Wunmi Mosaku e Delroy Lindo.
Duração: 138 min.
Nota: 4,0/5,0

 

Ryan Coogler entende na defesa do cinema de gênero e seus códigos históricos a potência para a construção de um discurso completo

A facilidade de filmar no cinema digital tornou qualquer um cineasta. Mas do que a arte em si, o que poderia ser uma ferramenta poderosa (e ainda é em grande medida) para permitir qualquer um contar a sua história e representar uma realidade (naquela lógica do manifesto de Glauber Rocha: “Uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”) vem se transformando em um mero meio discursivo, no sentido mais textual e menos imagético da palavra. Se antes era caro fotografar ou filmar (em filme), e o cineasta tinha de pensar com cuidado como cada plano seria concebido, hoje em dia, basta dar play na câmera e sair captando qualquer coisa. Isso não é uma daquelas defesas bobas de que “o verdadeiro cinema é feito em película”, como Christopher Nolan, Hoyte Van Hoytema e tantos outros fazem, negando as possibilidades estilísticas e práticas do digital (algo que Michael Mann já havia reconhecido no início deste século, quando fazer um longa de grande investimento assim ainda parecia loucura), mas um atestado de que cada vez menos cineastas estão dispostos a fazer cinema, a pensar nesta tela luminosa como uma organismo vivo de muitas possibilidades, a capacidade única da reprodução da imagem em movimento. A partir do momento em que os filmes viram apenas uma ilustração para o que teria o mesmo efeito em fios do Twitter ou que pessoas se interessam por fazê-los só por status, a capacidade reprodutiva, sensorial e ontológica dessa arte se perde.

Não se trata dos temas abordados, todo filme deve ser bom ou ruim para muito além do seu conteúdo ou do que quer dizer. Ryan Coogler parece ser um dos únicos cineastas contemporâneos a entender isso e Pecadores, após 10 anos dirigindo filmes de grandes franquias (os bons Creed e Pantera Negra e o fraco Pantera Negra: Wakanda Forever), é uma demonstração clara e rara para os tempos atuais de como um discurso social (ou diversos temas que circundam uma questão que vai das origens de um povo, sua ancestralidade, até o racismo e o enfrentamento revolucionário) não sobrevive sozinho, sendo potencializado justamente ao não ser simplificado, mas construído a partir de uma narrativa que entende os códigos de um ou mais gêneros. O prazer por narrar com raiva, mas com uma grande preocupação em fazer cinema é bastante evidente, inclusive compreendendo o formato e a película ideal para cada situação dentro do longa, alternando a razão de aspecto, do widescreen, com 70mm e também o IMAX. Poucas coisas foram tão minimizadas na hora de conceber um filme nos últimos anos quanto a proporção da tela (é só ver o quanto o cinema independente americano tem usado o 4:3 só porque virou moda nesse circuito, e quase nunca os filmes se beneficiam do formato), a atenção que Coogler dá para isso, construindo a sua mise en scéne, do número de pessoas no quadro, até a velocidade e a escala das cenas, reforçando inclusive o discurso dessa resistência de pessoas pretas a partir do filmá-las juntas, é uma raridade extremamente bem-vinda.

Mas não para por aí, Coogler constrói Pecadores para funcionar antes de mais nada pela anunciação. Ou melhor, por um sentimento de prenúncio. Claro que seguir dois personagens negros (Michael B. Jordan), nos anos 1920, no Mississipi, com dinheiro e enfrentando a dominância branca e racista da região, isso após abrir o fillme com uma cena de um garoto negro (Miles Caton) adentrando uma igreja todo ensanguentado e voltar um dia para contar como aquilo aconteceu, já seria o suficiente para entendermos que algo ruim está por vir. Mas não é só isso, cada cena, cada olhar, sobretudo como os irmãos gêmeos se portam, escondem informações e guardando mágoas e dúvidas para com os seus passados, transformam cada interação entre eles e aqueles que os conheciam de antes da ida para Chicago bastante densa, como se houvesse uma desconfiança pairando no ar. O objetivo é um lugar não apenas para enriquecer, mas para dar liberdade para todos os negros daquela comunidade, permitir que esses possam beber e dançar em um galpão isolado, fora da vista da sociedade. A escolha de retornar apenas um dia é acertada para construir essa tensão, tudo tem uma urgência, precisa ser resolvido naquela noite, como se aqueles personagens soubessem que talvez não haja um amanhã.

Só que a grande sacada está em não parar na atmosfera, como a maioria dos longas de terror faz atualmente. O gênero vive essa covardia do exibir, a diminuição da carne frente a um mar de sugestão. Coogler vai a fundo no que acredita e assim como algumas poucas obras recentes a abordar o racismo de maneira potente (como os filmes de Jordan Peele e a série Lovecraft Country) é no distanciamento com o real que Pecadores encontra sua força sensorial. O discurso não precisa ser mastigado, ele deve ser sentido. Coogler o constrói a partir da música, da dança, dos movimentos conjuntos de pés batendo no chão ou corpos dançando como se fossem um, sabe filmar a pele negra como poucos (é bastante comum filmes que tentam pontuar ao máximo o antirracismo não terem o cuidado com filmar seus personagens negros e os esconder em tela). Os personagens são destaque, impõem-se frente a qualquer ameaça e essa vem não como uma resposta pronta, mas como um conjunto desse prazer pelo cinema de gênero, não à toa, são as sequências musicais que trazem o perigo do terror fantástico. Coogler está muito mais interessado nesse confronto com esses demônios, mantendo todas as regras impostas aos vampiros por séculos, não as subvertendo, mas enfrentando o que está enraizado, do que exatamente nos brancos da Klu Klux Klan, que são liquidados rapidamente e com prazer pelo protagonista. A mensagem do cineasta é clara, não basta dizer algo, tem que saber como dizer, e a resposta está quase sempre no cinema de gênero e sua capacidade ímpar de nos deixar na ponta da cadeira.

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