|Crítica| 'É Tempo de Amar' (2025) - Dir. Katell Quillévéré
Crítica por Raissa Ferreira.
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'É Tempo de Amar' / Imovision
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Com relações interessantes de sobra para trabalhar, Katell Quillévéré se apega mais à figura do tempo, fugindo das necessidades dos dramas de seus personagens
Uma forte sequência abre É Tempo de Amar, incluindo imagens reais. Em preto e branco, mulheres são humilhadas em público, com símbolos nazistas pintados em seus corpos, cabelos raspados e outras violências praticadas por homens, em sua maioria. Tratam-se de cenas que retratam as chamadas “purgas legais”, ocorridas na França logo após a segunda guerra mundial, que consistiam em linchamentos de dezenas de milhares de mulheres acusadas de colaborarem com os nazistas por terem mantido relações sexuais com soldados alemães durante a ocupação na França. Percebe-se logo que o teor ali, bastante impactante, cruza a linha da ficção e, ao se entrelaçar com ela, apresentando a protagonista com a barriga estampada com uma suástica, sofrendo com a humilhação imposta, o longa de Katell Quillévéré estabelece prontamente uma relação complexa entre a mulher ali retratada e a criança que gera em seu ventre marcado.
Não é nada surpreendente, então, que pouco depois das cenas se tornarem abruptamente coloridas, na lavagem fotográfica comum ao filme de época europeu, o menino Daniel diga que seu maior desejo é que a mãe o ame. No entanto, há uma mudança de tom drástica da introdução ao que o filme realmente é em sua totalidade. O peso que se vê no vínculo inicial entre Madeleine (Anaïs Demoustier) e o filho, potencializado pela cena citada agora, vai sendo diluído aos poucos em uma obra que preocupa-se mais com sua ligação com o tempo retratado, do que com os dramas particulares de seus personagens. Daniel acaba sendo tão deixado de lado por Quillévéré quanto é pela própria mãe, enquanto É Tempo de Amar se dedica a observar a relação entre a mulher, François (Vincent Lacoste) e os segredos que ambos escondem, carregando o menino como uma bagagem incontornável, mas pouco apreciada.
É interessante como o encontro dos dois funciona na lógica da fuga, Madeleine escapando dos estigmas do passado com o soldado alemão, sem que fique totalmente clara a natureza do relacionamento, e François fugindo de sua sexualidade. Porém, é impossível para É Tempo de Amar esconder completamente o que o próprio filme levantou entre sua protagonista e o filho. A cada passagem do tempo, a narrativa parece tentar fugir de encarar essa relação, olhar diretamente para Daniel e permitir que a tensão e os conflitos aconteçam. A distração principal é centrar o drama no casal e na cumplicidade que cresce entre eles por cima de seus segredos. Madeleine se torna uma esposa um tanto amargurada pela falta de sexo com o marido e, embora seja clara a verdade, François tem dificuldade em expor suas questões com a mesma facilidade que a esposa teve lá no começo. Assim, em dado ponto surge um interesse sexual que afeta ambos, brincando com outras linhas a serem cruzadas na sexualidade e nos tabus, principalmente pensando na época retratada, mas tudo parece sempre estar justamente abaixo desse maior interesse de Quillévéré, o de ilustrar o tempo.
As passagens são muitas. Daniel vai crescendo aos poucos nesse canto negligenciado pelo filme e por sua família. A Madeleine importa mais se resolver com François do que com o filho, então a fuga de ambos, seja de cidade, do que escondem, de mentiras ou vergonhas, sempre acontece paralelamente ao maior escape, de lidar com o que existe no vínculo entre a mulher humilhada e a criança que gerou. Se Daniel é espelho do pai e reflexo dos traumas vivenciados durante e após a guerra, nada disso é trabalhado no filme, na verdade, a narrativa de Madeleine passa a ser cada vez menos afetada por essas questões ao longo do tempo, enquanto François é cada vez mais confrontado por ocultar sua verdadeira sexualidade. Se a esposa até consegue seguir em frente com sua vida, ignorando completamente seu maior problema que vive na mesma casa, o marido é punido, esmagado por um tempo em que nunca seria aceito por ser quem realmente é.
Mas, não há espaço para que os personagens lidem com seus sentimentos e relações à fundo. O longa os enclausura nesse retrato de época, como se fossem meros peões de um esquema pensado para ilustrar problemáticas e questões específicas de um recorte no tempo e no mundo. A França, do fim da segunda guerra até depois da ocupação militar estadunidense no país, é observada por seus obstáculos e preconceitos, e embora as pessoas sejam fundamentais ao filme e pareçam gritar para que seus dramas e traumas sejam trabalhados de acordo, o peso do contexto geral fica acima. O círculo do começo se fecha no final, mas não é dada a merecida atenção ao que conecta esses dois pontos. O que faz Madeleine nunca encarar o filho e esconder a verdade sobre seu pai, o que torna Daniel violento com a mãe, como viveu François tantos anos até se sentir sem saída quando exposto. A cumplicidade e a amizade entre o casal é dada, óbvia, no passar dos anos e em suas atitudes, mas muito do que é íntimo ao drama se perde.