|Crítica| 'Sem Chão' (2025) - Dir. Yuval Abraham, Basel Adra, Hamdan Ballal & Rachel Szor
Crítica por Victor Russo.
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'Sem Chão' / Synapse Distribution
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A compreensão das possibilidades do cinema como visibilidade de uma agressão histórica e, acima de tudo, do aparato como uma arma do confronto ao vivo
Ver No Other Land como favorito ao Oscar de Melhor Documentário imediatamente nos remete ao vencedor da categoria no ano passado: 20 Dias de Mariupol. Ambos filmes sobre os conflitos de maior visibilidade atualmente na mídia mundial retratam ataques de estados invasores/imperialistas/colonizadores a populações parcial ou completamente indefesas. Os resultados não podiam ser mais opostos. Se o longa documental sobre a Ucrânia carece de qualquer conhecimento sobre linguagem cinematográfica, e soa mais como uma série de reportagens sensacionalistas para a TV ucraniana a fim de gerar interesse pela repetição de imagens chocantes, para não dizer, abjetas, como crianças e mulheres grávidas mortas, o filme palestino, feito por quatro diretores (Basel Adra, Yuval Abraham, Rachel Szor, Hamdan Ballal), sendo os dois primeiros creditados parte integral do que é retratado frente às câmeras (e às vezes as empunhando também), é muito mais sóbrio em sua abordagem e, principalmente, entende o formato e o aparato e as suas possbilidades de se contar uma história que gere visibilidade para todo o mundo sobre o conflito de menor interesse na imprensa dominante (a mídia mundial, dominada por Estados Unidos e Europa Ocidental são historicamente pró-Israel e assim permanecem, ainda que um pouco menos, após as centenas de crimes de guerra cometidos pelo governo Benjamin Netanyahu no último ano e meio).
Não é necessário repetir cenas, nem sequer dar closes em corpos fragilizados mortos por forças opressoras. Muito menos criar uma narração em off manipulativa associando aquelas crianças mortas aos filhos do cineasta encarregado. Mstyslav Chernov (responsável por 20 Dias de Mariupol), jornalista de carreira, pode não entender tanto de cinema, mas nem por isso é inocente em sua abordagem como repórter experiente. Sabe forçar o choro e a compaixão da forma mais fácil possível. Já No Other Land entende o conflito de outra maneira, não como uma forma de chocar o mundo, mas de retratar pessoas, entender no mais íntimo a luta diária daqueles que só querem habitar as terras que sempre foram suas, passadas de geração para geração durante mais de dois séculos. Basel Adra não se posiciona como protagonista à toa, é o ponto de conexão entre o retratar e viver aquela realidade, é parte daquela comunidade, algo que aprendeu com os seus pais por décadas. Alguém que entendeu aos 7 anos de idade que os pais eram ativistas capazes de enfrentar soldados por uma luta justa de sobrevivência e manutenção de suas culturas e raízes não seria capaz de simplesmente sensacionalizar aqueles conhecidos em sofrimento. Mais do que alertar o mundo, Adra faz do cinema sua luta.
O termo “shot”, que em inglês serve tanto para atirar uma arma quanto para fotografar ou filmar, relação muito apontada pela crítica de arte Susan Sontag, não poderia ser mais preciso aqui. Adra e sua equipe podem não saber exatamente como irão montar aquele material, se realmente há uma construção narrativa (o que posteriormente é feito com muita habilidade), o importante é entender a arma que têm em mãos. Soldados israelenses com rifles, metralhadoras e escavadeiras, dispostos a matar e agredir cidadãos ou destruir casas e escolas sem pensar duas vezes, sentem o peso da câmera ou do celular de Adra apontando contra eles, essa representação de um olho capaz de mostrar para todo o mundo, ao vivo, o que está acontecendo e sendo escondido pelo governo israelense na Cisjordânia e em outras regiões do Estado Palestino. É o cinema como a possibilidade de mostrar verdades, de entender as novidades do aparato e de se relacionar com a cultura dominante de um tempo.
Se Chernov parecia incapaz de diferenciar um documentário de uma reportagem sensacionalista, para os quatro cineastas de No Other Land sobra a percepção da câmera como parte presente e integral na vida da sociedade contemporânea, conseguindo, assim, ir do ao vivo para as redes sociais, passando pela reportagem jornalística, até as possibilidades do cinema de guerrilha, tudo amarrado por uma montagem que determina tempos e constrói narrativa.