|Colunas| Coluna Coágulo #005 - Por Tati Regis: 'Horror, Escatologia, Grotesco e Comédia'
Tati Regis escreve mensalmente sobre o cinema de horror na coluna Coágulo.
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Horror, Escatologia, Grotesco e Comédia
Por Tati Regis:
Se há algo que nos conecta enquanto humanos, além do medo da morte, é o riso. A finitude nos iguala, e o humor nos aproxima. Mas o que acontece quando esses extremos se encontram? Quando o terror se torna cômico e a comédia mergulha em sangue, vísceras e fluidos corporais? O resultado é um território de excessos, onde a repulsa se converte em riso nervoso.
Recentemente, assisti ao curta brasileiro Sugar Dead 2 - A Baby teve um Baby (2025), de Flávio Carnielli. Como o próprio título sugere, trata-se da continuação de Sugar Dead (2021), uma franquia que brinca com a interseção entre humor e bizarrice gráfica. No primeiro filme, Carnielli já explorava o duplo sentido do título, que remete ao termo sugar daddy, e o transformava em algo perturbador. Na sequência, ele amplifica esse jogo, intensificando tanto o absurdo quanto a fusão entre o macabro e o cômico. Se o original já transitava entre o grotesco e o ridículo, a continuação leva essa abordagem a um nível ainda mais exagerado, explorando o corpo como fonte simultânea de horror e deboche. Como o filme ainda não foi lançado oficialmente e está programado para estrear em festivais, não posso dar mais detalhes, mas vale ficar de olho. Foi pensando nessas obras que me deu o gatilho para escrever um pouco sobre o tema de hoje.
O excitante nem sempre é limpo
A estética do grotesco sempre esteve presente na arte. As gárgulas das catedrais medievais, por exemplo, são representações deformadas e exageradas, mas que possuem um valor estético inegável e foram mencionadas por Umberto Eco explora A História da Feiura (2007). No cinema de terror, essa lógica se manifesta de forma intensa, especialmente no body horror, onde a mutação e a degradação do corpo não apenas causam choque, mas também fazem refletir sobre identidade e normalidade. O gênero brinca com nossos limites físicos e psicológicos, transformando a carne em algo mutável, imprevisível e, muitas vezes, involuntariamente cômico.
Um dos exemplos mais marcantes dessa abordagem é Tetsuo: O Homem de Ferro (1989), de Shinya Tsukamoto, que leva ao extremo a fusão entre carne e metal, criando uma experiência caótica que oscila entre o pavor e a estética fascinante. O mesmo princípio se aplica a filmes como Salò ou os 120 Dias de Sodoma (1975), de Pier Paolo Pasolini, às produções trash da Troma, e a obras mais recentes, como Terrifier (2016), de Damien Leone. Essas narrativas mostram como o terror pode explorar o bizarro e o absurdo de maneira expurgante, desafiando nossas noções de limite.
Produções como O Vingador Tóxico (1984), de Lloyd Kaufman, Braindead (1992), de Peter Jackson, e Doente de Mim Mesma (2022) reforçam essa tradição, combinando o choque gráfico com uma ironia latente. No Brasil, essa abordagem encontra eco em diretores como José Mojica Marins, Rodrigo Aragão e Petter Baiestorf. Este último, em especial, desenvolveu um estilo próprio dentro do gorechanchada, com títulos como Arrombada: Vou Mijar na Porra do Seu Túmulo!!! (2007) e Zombio 2: Chimarrão Zombies (2013), onde mutilações e fluidos corporais atingem um nível tão extremo que acabam provocando tanto repulsa quanto riso.
Por que algo pode ser assustador e engraçado ao mesmo tempo?
O nojo e o medo são respostas instintivas de autopreservação. No entanto, quando esses sentimentos são exagerados ou apresentados em um contexto seguro, como no cinema, o cérebro pode reagir de maneira inesperada, transformando a tensão em humor. Quem nunca soltou uma risada logo após um susto? Essa reação é amplificada quando há uma plateia, como em uma sala de cinema, onde o impacto coletivo da experiência intensifica as emoções. Essa mesma lógica explica por que muitas pessoas riem diante do grotesco: o riso nervoso acaba surgindo como uma válvula de escape para lidar com o desconforto. A comédia escatológica se aproveita disso ao ultrapassar os limites do aceitável, empurrando o espectador para um ciclo de repulsa e diversão.
Outro fator essencial é a obsessão com a materialidade do corpo. A carne exposta, os órgãos à mostra e as deformações extremas nos lembram de nossa própria vulnerabilidade, ao mesmo tempo que exercem um certo fascínio. A Substância (2024), de Coralie Fargeat, trabalha exatamente essa tensão ao apresentar um experimento que promete juventude eterna, mas resulta em corpos grotescamente alterados. O horror físico, aqui, é tão exagerado que beira o cômico, o que tornou os minutos finais do filme particularmente estranhos para muita gente.
O filósofo Mikhail Bakhtin, ao discutir o grotesco em A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento, aponta como essa estética está ligada à transgressão e ao rompimento de fronteiras. Ele associa o grotesco à carnavalização, um processo que subverte normas e hierarquias por meio do riso, da deformação e do caos. No cinema de horror, essa ideia se manifesta de forma extrema, com corpos que se despedaçam, se fundem ou se regeneram de maneiras impossíveis, criando uma nova lógica visual onde a única regra é o excesso.
Essa exposição irreverente da carne, a mistura entre humano e monstruoso e a transformação física que questiona noções de identidade fixa, se faz presente também em A Mosca (1986), de David Cronenberg, principalmente na maneira como a mutação do protagonista dissolve os limites entre humano e inseto, tornando sua existência cada vez mais irreconhecível. O resultado não apenas ultrapassa os limites do corpo, mas também desafia nossas ideias de normalidade, nos forçando a encarar o estranho como parte da condição humana. As comédias de horror de John Waters confirmam esse tipo de transgressão visual, nelas encontramos uma abordagem semelhante quando ele escancara aquilo que a sociedade considera abjeto. Filmes como Pink Flamingos (1972) e Female Trouble (1974) desafiam convenções ao expor corpos fora dos padrões, a sujeira e os desejos desviantes como forma de subversão. Assim como no terror corporal, Waters usa o choque e o grotesco para desmontar certezas, expondo a fragilidade dos corpos e das categorias sociais que tentamos impor a eles.
No fim das contas, terror, escatologia e comédia convergem porque compartilham um mesmo princípio: a capacidade de provocar choque. O medo nos assusta, o asco nos repele, e o humor transforma tudo isso em algo absurdamente divertido. Quando bem equilibrados, esses elementos criam experiências que nos fazem sentir algo visceral, quase físico. Talvez seja essa combinação que tanto nos atrai, uma lembrança de que, no fundo, somos todos seres caóticos tentando rir do inevitável colapso de nossa própria carne.