|Crítica| 'Nickel Boys' (2025) - Dir. RaMell Ross
Crítica por Victor Russo.
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'Nickel Boys' / Prime Video
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A câmera subjetiva nunca serve apenas a um experimentalismo de distinção, mas vai se ressignificando a cada passo da narrativa, até uma compreensão do todo ao final
Fazer um filme todo ou com grandes sequências em câmera subjetiva, ou seja, com o aparato simulando o que um dos personagens está vendo, é tanto um desafio, já que impõe automaticamente uma ordem formal difícil de ser rompida (como o found footage, que é o olhar de uma câmera da diegese, há quase uma necessidade implícita do ponto de vista que deve ser seguido à risca, sem trapaças), como também um dispositivo que chama atenção para si, e, por isso, imediatamente é refém de comparações. Nickel Boys passa longe de ser o primeiro filme a utilizar essa escolha de ponto de vista de maneira tão restrita e dominante no andar da narrativa, ainda que não se feche apenas nela, visto que muitas inserções são feitas, na forma documental (no formato filme-colagem), a mais intrusiva por se diferenciar completamente do todo, e em flashforwards que nos restringem ao filmar a nuca do protagonista muitos anos depois, o que não deixa de chamar bastante atenção por não ser usual, pelo menos não quando todas as vezes que vemos o personagem ele é mostrado (ou escondido) dessa forma. Não que haja uma necessidade de se justificar, mas quando RaMell Ross não suaviza essa perspectiva, automaticamente o espectador menos passivo vai tentar compreender como a câmera subjetiva o afeta e o porquê de contar a história daquela forma.
Engana-se, então, quem pensa que Ross simplesmente usa esse artifício como uma forma de nos aproximar daquele personagem e do que ele viveu, visto que, inicialmente e durante boa parte do longa, o plano subjetivo adquire uma espécie de vida própria, nos levando por sensações ao longo do tempo (momento que o longa se permite cortar entre idas e vindas captando boa parte da infância e juventude do garoto, mas sem explicar tanta coisa). O que Nickel Boys quer dizer até fica bem claro, pelo menos sua crítica principal ao reformatório e todos os abusos que ali acontecem, fortemente baseados na cor daqueles que sofrem a agressão. Mas ver pelos olhos de Elwood (Ethan Herisse) não necessariamente nos aproxima dele e do que ele está sentindo, visto que a maneira pela qual se filma o seu ponto de vista, com uso de grande-angular e steadycam, gera uma certa artificialização proposital, parece uma espécie de gameplay em primeira pessoa (inclusive na voz abafada de Elwood). Ross não esconde mais uma vez o artifício, cria jogos evidentes para tornar ainda mais claro o que pretende, seja ao revelar o garoto em reflexos ou como na cena com a garotinha no ônibus, sem tanta relevância para a trama, mas que nos acostuma com a seleção de como veremos aquele mundo. Esse afastamento muda um pouco de figura quando o protagonista interage com a sua avó Hattie (Aunjanue Ellis-Taylor) e, principalmente, Turner (Brandon Wilson), a quem estabelece um doce companheirismo e merece um detalhamento à parte.
Rapidamente, Turner deixa de ser só o amigo e vira também um narrador daquela história (mais uma vez Ross marca essa transição, ao repetir uma cena, agora pelo olhar do outro garoto), sendo o único pelo qual nos é permitido observar por seu ponto de vista, também com o uso da câmera subjetiva. É curioso como isso permite uma igualdade entre os garotos, ainda que Elwood seja sempre o protagonista, e se torna realizável o que há de mais comum no cinema, o clássico plano e contraplano, o que seria banal em outro filme, mas nesse vira um evento, só possível entre os dois personagens. Todo esse longo jogo de experimentações, que até cria uma certo freio narrativo e perda de ritmo durante boa parte do desenvolvimento da trama, e intrusões, vai ser ressignificado ao final, criando no espectador um entendimento de cada escolha, da divisão do ponto de vista, passando pelo marcante plano refletindo do alto os dois garotos ao mesmo tempo, a ponto de não sabermos de qual dos dois é aquele olhar (ou seria de ambos ao mesmo tempo), e pela interação entre Hattie e Turner, inicialmente sem grandes proporções ou atenção, até o filmar a nuca que se revela ser do ator Daveed Diggs. A mistura de denúncia com uma sofrida e tocante memória ganha um novo caráter a partir de uma reviravolta sutil e inesperada, criando um entendimento mais completo, belo e nada aleatório do plano subjetivo que domina a narrativa. É quando forma e conteúdo são finalmente compreendidos como indissociáveis.