|Crítica| 'Flow' (2025) - Dir. Gints Zilbalodis
Crítica por Victor Russo.
![]() |
'Flow' / Mares Filmes
|
Flow expressa em tela a paixão de seu realizador por fazê-lo, tornando a simplicidade do discurso em um grande cinema de decupagem meticulosa
Ao subir os créditos finais, vemos o nome de Gints Zilbalodis não só na direção e no roteiro, mas em diversas funções da produção, que conta com equipe bastante enxuta. Os mesmos créditos expõem o software gratuito utilizado para a realização do longa, evidência de um baixo orçamento facilmente reconhecido em tela, na falta de acabamento e detalhamento dos personagens e cenários, sobretudo em momentos de movimentação rápida, fazendo os traços parecerem uma pintura. Se isso poderia ser um problema para os fãs do realismo e as diversas animações, principalmente 3D, embriagadas por um fotorrealismo, muitas vezes até como uma rejeição à animação ou diminuição dela, em Flow, essas imperfeições viram um charme, um trunfo para um longa que tenta ganhar o espectador pelo coração, mas nunca tornando essa empatia fácil uma forma de fazer menos cinema.
O filme entra então em um conflito harmônico. A simplicidade do discurso sobre o fim do mundo, das mudanças climáticas, da união entre diferentes espécies que contrasta com a nossa sociedade humana individualista, a empatia fofa dos bichinhos tentando sobreviver e uma trama com percalços previsíveis e final otimista, encontra uma forma de contar essa história por meio do cinema, muito mais complexa, capaz de tornar mais interessante esse roteiro e, por que não, apelo mais direto à emoção provocada por essas figuras indefesas de olhos arregalados e ações bonitas.
A história bonitinha e aparentemente tradicional imediatamente rejeita o modo dominante de se narrar no cinema contemporâneo, excluindo as falas em um período que essa arte sofre em representar por imagens e quase sempre recorre à exposição textual para se fazer entender claramente em frente a um público cada vez mais condicionado a ter essas respostas simplificadas. Zilbalodis se mantém fiel ao que acredita (mesmo após ter sido rejeitado por estúdios Hollywoodianos, que exigiam falas na boca dos animais, dificultando assim a feitura da obra) e retorna ao cinema mais primordial, ao nascimento da animação, em um período de filmes mudos, alguns com cartelas cheias de textos, outros, assim como Flow, restritos apenas às imagens. Claro que o som aqui é fundamental, algo impossível naquele primeiro cinema, tanto em criar aquele ambiente vivo em constante transformação, como, acima de tudo, ao nos permitir ouvir os miados, latidos e demais tentativas de comunicação dos animais.
Entretanto, se muito se fala na cinefilia com paixão pela escolha do filme em se manter sem diálogos (pelo menos no sentido do falar), de nada adiantaria se o longa não soubesse fazer cinema de verdade, ou seja, contar essa história por meio de imagens. E é aí que entra a maior complexidade na execução do Zilbalodis, assim como outro conflito harmônico entre o tradicional e a narrativa menos industrial. Se o longa é relativamente previsível nas relações, conflitos, temas e fechamento, a condução é um tanto menos óbvia, recorrendo ao elemento presente no título (Fluxo, em português,), muito próximo de uma cinema menos estruturado e mais entregue ao movimento e ao acaso que ganhou espaço a partir do final dos anos 1990 nos principais festivais do mundo, mas nunca furou muito essa bolha. Claro que aqui há uma jornada, o rio que leva o personagem de um ponto A, sua casa (provavelmente), a um ponto B, seu novo lar com os amigos que fez pelo caminho. Mas o desenvolvimento dos acontecimentos durante o percurso são muito mais orgânicos, quase banais, e é justamente daí que parte a graça do longa. São os animais fazendo o que cada espécie costuma fazer, o gatinho dormindo enroladinho, derrubando objetos no chão, levantando o rabo, andando em lugares estreitos ou rebolando antes de pular no reflexo, enquanto o lêmure acumula coisas e se fascina com o espelho, a anta dorme, o labrador quer brincar e obrigar todos a se divertir com ele, e assim por diante. Vale mais esses momentos pequenos do que qualquer outra coisa, é um convite ao fascínio pelo que há de mais mundano no fim do mundo.
E se isso realmente funciona é porque Zilbalodis não só se diverte ao reproduzir as características desses animais, mas tem um preocupação com cada imagem que se apresenta em tela. É a compreensão do mais básico que uma animação (e todo filme) deveria ter (o que Robô Selvagem também domina como poucos), uma ideia de decupagem bem estabelecida, nesse caso, simulando a presença de uma câmera como esse olhar dominante. Aqui, ela tanto flutua, passeia pelos personagens e movimentos, fascina-se com aquele espaço e nos convida a viver aquela realidade juntos, como adota também o ponto de vista do gatinho protagonista, percebendo a possibilidade intrínseca ao cinema de empatizar, ao vermos pelos olhos dos personagens. Da simplicidade, o diretor letão faz cinema, ou melhor, faz cinema com paixão.