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|Colunas| Coluna Coágulo #003 - Por Tati Regis: 'Natal Sob a Sombra do Terror'

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Tati Regis escreve mensalmente sobre o cinema de horror na coluna Coágulo.

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Natal Sob a Sombra do Terror

Por: Tati Regis

Quando pensamos no Natal, a última coisa que imaginamos são gritos de pavor ecoando entre as luzes piscantes ou manchas de sangue tingindo a neve. Bem… por aqui não temos neve, pelo menos na maior parte do Brasil, mas isso não nos livra do lado sombrio das festas de fim de ano. Afinal, essa é uma época de alegria, união e, claro, a inevitável piada de tiozão sobre “pavê ou pacumê”. Uma anedota inofensiva? Talvez. Mas até o humor mais banal pode se transformar em puro terror. E se o Natal, com todo o seu brilho encantador, fosse o cenário perfeito para o macabro? É exatamente isso que o terror natalino faz: subverte o conforto dessa época tão querida, convertendo cânticos alegres e decorações festivas em símbolos de um pesadelo embrulhado para presente.

A ligação entre o Natal e o medo não é novidade. Antes de se tornar sinônimo de presentes e alegria, a data era envolta em tradições e lendas de arrepiar. Na Europa, histórias de fantasmas ecoavam à beira da lareira, enquanto figuras assustadoras como Krampus — o demônio que punia crianças travessas — e o Kallikantzaros — um duende que surgia no Natal para semear o caos — tornavam as festas um espetáculo de terror. Nos Alpes, o Straggele, uma entidade associada a punições severas, reforçava o clima sombrio das celebrações. Essas raízes históricas, onde o festivo e o macabro andavam de mãos dadas, hoje inspiram filmes que transformam essa dualidade em puro entretenimento.

Mas o que acontece quando as luzes de Natal iluminam os cantos mais sombrios da nossa imaginação e vêm acompanhadas por gritos e arrepios? Essa pergunta parece ser o ponto de partida para diretores que exploram o terror natalino. É como se nos convidasse a enxergar o lado oculto da celebração: onde a euforia pode se tornar claustrofóbica e o espírito de comunhão revela as tensões familiares e os segredos guardados sob a árvore. É nesse espaço que o terror de Natal encontra seu maior impacto.

Lembro da primeira vez que assisti Gremlins em um final de ano. Não sabia se ria, se me escondia atrás da almofada ou se admirava aquela combinação improvável de fofura, morte e caos. Foi depois de algumas revisões, já mais crescida e com um certo grau de amadurecimento, que percebi como o terror natalino não só nos diverte, mas também desafia nossas percepções, desconstruindo alguns clichês e transformando figuras icônicas, como Papai Noel, em ameaças assustadoras. Filmes como Papai Noel das Cavernas (2010), que é um dos meus favoritos dessa época e faço questão de rever todo ano, são perfeitos exemplos de como o gênero pode explorar a mitologia natalina de forma criativa e subversiva. Além disso, clássicos como Noite de Terror (1974) e Natal Sangrento (1984) trazem uma tensão visceral que contrapõe o espírito festivo, enquanto obras como Rota da Morte (2003) e Perigo Próximo (2017) combinam suspense, mistério e violência com um toque irônico e assustador.

No Brasil, o terror natalino é quase inexistente, e arrisco alguns fatores que ajudam a explicar essa escassez de produções. Além da falta de investimentos em cinema de gênero e cinema de um modo geral no nosso país, o Natal aqui é mais associado à alegria e às confraternizações familiares do que ao misticismo ou à melancolia do inverno europeu.

Vivemos em um país tropical, com calor intenso e chuvas de verão, e essas características poderiam ser transformadas em elementos de tensão em histórias de horror. Nossa cordialidade aparente, a mesa farta, as figuras folclóricas e tradições locais, como a Folia de Reis e o Pastoril, poderiam ser reinterpretadas para criar narrativas aterrorizantes, misturando o macabro ao festivo.

Imagine, por exemplo, uma história onde o calor sufocante de dezembro intensifica o desconforto de uma ceia familiar, revelando segredos sombrios. Ou uma trama onde o Papai Noel se torna uma figura vingativa em uma cidade interiorana que esqueceu o verdadeiro espírito natalino. Nossa rica mitologia popular — com figuras como o Saci, a Cuca ou o Jaraguá— oferece infinitas possibilidades de reimaginação, criando antagonistas natalinos únicos e culturalmente relevantes. Afinal, se outras nações transformaram o Krampus em um ícone do terror, por que não usar elementos locais para enriquecer nossa cinematografia e explorar essa lacuna no gênero?

Há algumas exceções curiosas. O curta Jérôme: Um Conto de Natal (2020), dirigido por Beatriz Saldanha durante a pandemia, mistura gatinhos fofinhos e satanismo para contar uma história perturbadora, bem-humorada e inesperada. Outra obra digna de menção é Exorcismo Negro (1974), de José Mojica Marins que, apesar de não ser propriamente um terror natalino, o filme se passa durante um final de semana no feriado de Natal, envolvendo sua atmosfera sombria com a data. Essas produções mostram que o potencial para o terror natalino brasileiro existe e que, ao explorar nossas próprias características culturais e tradições, podemos criar histórias fascinantes e inovadoras, capazes de refletir as ansiedades e particularidades de nossa sociedade. Essas produções, junto aos clássicos estrangeiros, nos fazem questionar o verdadeiro significado de "paz na Terra" enquanto nos envolvem em tramas tão inquietantes quanto cativantes.

Aliás, o espírito de sobrevivência é um dos temas mais marcantes nas histórias de Natal, especialmente quando personagens são forçados a enfrentar ameaças em meio a cenários festivos. Essas histórias os levam ao limite, seja lidando com criaturas mitológicas ou com tensões familiares sufocantes. Um bom exemplo disso, aproveitando um dos filmes já citados no texto, é o finlandês Papai Noel das Cavernas (2010), que transforma a figura de Papai Noel em um ser ancestral e ameaçador. Nele, um vilarejo luta para se proteger de uma ameaça mortal vinculada à lenda de Krampus, o demônio que punia crianças travessas. A história reinventa essa lenda ao apresentar Krampus como uma criatura primitiva, que habita as cavernas do Ártico e caça aqueles que invadem seu território. Dirigido por Jalmari Helander, o filme explora as lendas finlandesas, onde Krampus é uma versão demoníaca do Papai Noel, e o transforma em um monstro aterrorizante. Em vez de se concentrar na magia natalina, Papai Noel das Cavernas foca no terror psicológico e físico, enquanto seus personagens tentam sobreviver a um Natal distorcido, onde o espírito festivo é substituído pela luta pela sobrevivência, pelo enfrentamento dos mistérios sombrios dessa lenda e uma certa crítica ao consumismo exagerado da época.

Da mesma forma, Gremlins explora a ideia de sobrevivência ao nos apresentar um caos crescente que transforma a vida dos personagens em um verdadeiro pesadelo, enquanto tentam proteger não apenas suas casas, mas também sua sanidade. Assim como o Natal possui suas tradições e rituais, a obra de Joe Dante introduz um conjunto de regras específicas que, quando quebradas, desencadeiam consequências desastrosas. As instruções são simples: não molhar o Mogwai, evitar a exposição à luz forte e, acima de tudo, nunca alimentá-lo após a meia-noite. Essas normas, aparentemente inofensivas, ecoam as convenções natalinas, mostrando como a desobediência pode transformar algo mágico em algo aterrorizante. Quando as regras são violadas, os gremlins são liberados, instaurando o caos em meio às luzes festivas. A narrativa mistura humor com uma crítica sutil ao consumismo desenfreado e à perfeição artificial associada às festas de fim de ano. Conforme os personagens lutam para conter a devastação, a conservação da vida se torna uma batalha contra o tempo, destacando como até os rituais mais simples podem ocultar consequências imprevisíveis.

Essa ideia de sobrevivência, no entanto, vai além do confronto com monstros ou o sobrenatural. Em Perigo Próximo, outro exemplo já mencionado, a ameaça não vem de criaturas mitológicas, mas de algo muito mais real e palpável: outros seres humanos. A obra de Chris Peckover transforma o ambiente doméstico — tradicionalmente associado ao conforto e à segurança durante as festas — em um palco de tensão extrema, onde cada ato de resistência reflete não apenas um embate físico, mas também o desgaste psicológico que a época pode amplificar. Já em Rota da Morte, a ameaça em torno dos personagens que estão indo para a ceia familiar tradicional, se torna ainda mais abstrata, à medida que a estrada e o isolamento se transformam em símbolos de angústia e desespero. No filme dos diretores Jean-Baptiste Andrea e Fabrice Canepa, o terror não se materializa em uma figura monstruosa, mas surge das dificuldades de navegar pelas relações familiares deterioradas, que muitas vezes ficam mais evidentes durante o feriado natalino. A estrada desolada se torna uma metáfora para os caminhos tortuosos da convivência e os conflitos não resolvidos, criando uma atmosfera de desconforto e vulnerabilidade.

Dessa forma, enquanto monstros e entidades sobrenaturais representam um horror mais literal, essas tramas, digamos “reais”, exploram como o ser humano e o próprio ambiente podem ser tão ameaçadores quanto qualquer criatura fantástica, mostrando que o verdadeiro terror pode surgir dos lugares mais familiares e das circunstâncias mais corriqueiras.

Apesar de ser uma época de luzes e celebração, o Natal no terror, transforma o conforto em ameaça, a união em tensão e os desejos mais doces em pesadelos. Seja nos grandes clássicos ou em produções independentes, o terror natalino nos lembra que até os momentos mais mágicos têm seu lado pavoroso — e talvez seja exatamente isso que os torna tão fascinantes. Valeu, Natalina! Obrigada a quem leu até aqui. Quando essa coluna for ao ar, o Natal já passou, mas o Réveillon está logo aí, e é sempre bom ficarmos atentos aos possíveis perigos. Nos vemos em 2025 com muito mais terror, na ficção, de preferência.

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