|Colunas| Coluna Coágulo #002 - Por Tati Regis: 'Helen e Brianna: O Feminino no Terror de Candyman'
Tati Regis escreve mensalmente sobre o cinema de horror na coluna Coágulo.
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Helen e Brianna: O Feminino no Terror de Candyman
Desde suas origens, o terror tem sido um gênero poderoso para explorar os traumas que moldam a experiência humana, tanto em sua dimensão individual quanto coletiva. Narrativas de medo, sofrimento e violência atuam como espelhos das ansiedades mais profundas da sociedade, refletindo questões como opressão, desigualdade e luto em diferentes épocas e contextos. Ao longo do tempo, essas histórias se tornaram mais do que entretenimento assustador, elas passaram a oferecer uma lente crítica para compreender realidades muitas vezes silenciadas ou ignoradas.
Na estreia da minha coluna, falei sobre como o gênero é plural, capaz de abordar uma ampla gama de temas, sensações e experiências. Hoje, quero tocar em dois filmes, mais precisamente nas protagonistas femininas deles que podem exemplificar essa riqueza: Helen de O Mistério de Candyman (1992, Bernard Rose) e Brianna de A Lenda de Candyman (2021, Nia DaCosta). Os dois filmes têm como eixo central a mesma figura mítica, que é o Candyman, mas cada obra explora o terror e a abordagem feminina de maneiras distintas, conectando suas protagonistas a experiências marcadas pelo trauma, mas com enfoques diferentes.
Enquanto o original de 1992 foca no impacto individual, com Candyman representando o medo como uma figura mitológica, a versão de 2021 amplia a narrativa para um dano coletivo, refletindo a violência intergeracional vivida pela comunidade negra nos Estados Unidos. Nesse contexto, Helen Lyle (Virginia Madsen) e Brianna Cartwright (Teyonah Parris) se tornam essenciais para ilustrar como as questões de gênero, raça e violência são abordadas no terror, com suas experiências pessoais servindo como um ponto de conexão entre os efeitos do sofrimento individual e as realidades sociais mais amplas.
No filme dirigido por Bernard Rose, a ferida é filtrada pela perspectiva de Helen, uma acadêmica branca que, ao investigar a lenda de Candyman, se lança em um território socialmente marginalizado: o Cabrini-Green, conjunto habitacional em Chicago conhecido por seu histórico de pobreza, violência e segregação racial. Sua jornada rapidamente se entrelaça com a violência associada à figura de Candyman, transformando seu trauma em uma narrativa de martírio e obsessão. De acordo com a perspectiva de Barbara Creed em The Monstrous-feminine, a feminilidade de Helen é uma chave para compreender a personagem, pois ela está profundamente ligada ao medo que a cerca, especialmente na relação que ela estabelece com a figura masculina, sedutora e ameaçadora de Candyman, vivido pelo Tony Todd, falecido esse ano. Sua incursão em um espaço que não lhe pertence simboliza a violação de corpos e territórios, e o filme, ao punir sua transgressão, insinua que Helen ultrapassou fronteiras sociais e raciais que não deveria. Ela se torna uma manifestação de terror, refletindo como o feminino é tradicionalmente tratado como terreno perigoso no gênero.
Ao lado de Helen, não se pode apagar sua presença, Bernadette Walsh (Kasi Lemmons), sua colega de pesquisa e amiga, serve como uma presença que navega entre esses mundos de maneira mais cautelosa e consciente das barreiras raciais. Como uma mulher negra, Bernadette percebe os riscos que Helen muitas vezes ignora ou subestima, tornando-se, assim, uma voz de alerta e de prudência. Sua presença ressalta como o filme também explora as dinâmicas de privilégio e marginalização. No entanto, mesmo sendo mais consciente dessas tensões, Bernadette é tragicamente punida, o que reflete o duplo peso da violência racial e de gênero que recai sobre mulheres negras em narrativas de terror.
Já no filme de 2021 dirigido por Nia DaCosta, o foco muda. Brianna, uma mulher afroamericana, estabilizada economicamente, curadora de arte que trabalha em uma galeria e desempenha um papel importante na introdução do trabalho artístico de Anthony (Yahya Abdul-Mateen II), seu namorado, traz para o primeiro plano uma vivência marcada pela violência coletiva, resultado de gerações de opressão racial e enraivecimento sistêmico. Aqui, o terror não se limita a uma experiência individual, mas se expande, conectando Brianna e Anthony a um ciclo de dor, morte e silenciamento que ecoa pela história da comunidade negra. A análise de Robin R. Means Coleman em Horror Noire se faz crucial: o filme desloca o terror da experiência isolada de um indivíduo branco para um dano coletivo, explorando como Candyman representa um ciclo contínuo de brutalidade histórica infligida a povos negros. O papel de Brianna ressignifica o protagonismo feminino no gênero ao fazer de sua resistência um elemento chave para a narrativa, conectando-a ao passado e ao presente de Cabrini-Green, dessa vez já gentrificado.
Ambas ilustram como o horror utiliza o feminino para explorar medos e conflitos que vão além do sobrenatural, mas que também ecoam estruturas sociais concretas, destacando o papel fundamental das mulheres no gênero, não apenas como vítimas ou heroínas, mas como catalisadoras de reflexões profundas sobre violência, opressão e transformação, reafirmando o potencial do terror para desconstruir e ressignificar o feminino em todas as suas complexidades.
Importante lembrar que essa é apenas uma das visões, das várias interpretações que se pode fazer dos dois filmes e de suas camadas, das mais evidentes às mais sutis. Ambos os filmes são ricos em simbolismos e metáforas, permitindo análises que transitam entre questões sociais, históricas, psicológicas e até filosóficas. Cada espectador pode enxergar algo diferente dependendo de suas vivências e referências, o que reforça a complexidade e o impacto do terror enquanto gênero narrativo.